Eliminando o Humano

Em ensaio brilhante, David Byrne fala sobre o fim da interação humana e as reações que precisamos ter Já. Há muita gente comentando sobre o texto de Byrne, mas não encontrei tradução. Então, o fiz para a lingua portuguesa para facilitar a todos e podermos conversar. Há tanto a se conversar de humano para humano! (Arnaldo) NOTA: Os grifos no texto são meus.

Eliminando o humano

Por David Byrne
Tradução de Arnaldo V. Carvalho

Estamos envolvidos – e imersos – em aplicativos e aparelhos que, silenciosamente, reduzem a quantidade de interação significativa que temos uns com os outros.

Eu tenho uma teoria de que muito do recente desenvolvimento e inovação tecnológica da última década ou mais tem um compromisso secreto: a possibilidade de um mundo com menos interação humana. Essa tendência é, eu suspeito, não uma falha – é uma característica. Poderíamos pensar que Amazon é sobre fazer os livros ficarem disponíveis para nós que não conseguíamos encontrar localmente – e é verdade, e que ideia brilhante essa -, mas talvez ela também seja um tanto a respeito da eliminação do contato humano.

É isso então, é a nova norma. A maioria das notícias tecnológicas com as quais somos bombardeados é sobre algoritmos, Inteligências Artificiais (IAs), robôs e carros auto-dirigidos, todos os quais se encaixam nesse padrão. Não estou dizendo que tais desenvolvimentos não são eficientes e convenientes; não é um julgamento. Estou simplesmente percebendo um padrão e me perguntando se, ao reconhecermos esse padrão, é possível percebermos que é apenas uma trajetória de muitas. Existem outras estradas possíveis por onde poderíamos seguir, e aquela em que estamos não é inevitável ou a única; Ela (possivelmente inconscientemente) foi escolhida.

Eu percebo que estou fazendo algumas suposições e generalizações radicais e loucas com essa proposta – mas eu posso dizer que estou, ou pelo menos estive, no grupo que se identificaria com o inconfesso desejo de limitar a interação humana. Eu cresci feliz, mas também vivenciei várias interações sociais extremamente desconfortáveis. Frequentemente, perguntei a mim mesmo se havia havia regras em algum lugar que não me contaram, regras que explicariam tudo para mim. Às vezes eu ainda tenho pormenores sociais “explicados” para mim. Frequentemente estou feliz de ir a um restaurante sozinho e ler. Eu não gostaria de ter que fazer isso o tempo todo, mas não tenho nenhum problema com isso – embora às vezes eu perceba olhares que dizem “pobre homem, ele não tem amigos”. Portanto eu acredito que posso dizer algo sobre de onde esse impulso não falado pode vir.

A interação humana é muitas vezes percebida, na mentalidade de um engenheiro, como complicada, ineficiente, ruidosa e lenta. Parte do fazer algo “sem fricção” é colocar o lado humano fora do caminho. Não é que fazer um mundo para acomodar essa mentalidade seja “mau”; mas quando se tem tanto poder sobre o resto do mundo como o setor de tecnologia exerce sobre pessoas que podem não compartilhar dessa visão de mundo, surge o risco de um estranho desequilíbrio. O mundo tecnológico é predominantemente masculino – muito mesmo. Testosterona, combinada com uma diretiva de eliminar o máximo possível da interação entre humanos reais pela causa da “simplicidade e eficiência”, monta a equação; e esse é o futuro.

A EVIDÊNCIA

Aqui vão alguns exemplos de tecnologias de consumo bastante onipresentes que provêem uma menor interação humana.

Compras Online e entrega em casa: Compras on-line são tremendamente convenientes. Amazon, FreshDirect, Instacart, etc. não apenas cortaram as interações nas livrarias e nas filas dos caixas; Eles eliminaram toda a interação humana dessas transações, excluindo as recomendações on-line (muitas vezes pagas).

Música digital: Downloads e streaming: não existe uma loja física, é claro, então não há nenhum daqueles funcionários esnobes que se acham “os sabichões” para lidar. Whew, você pode dizer. Alguns serviços oferecem recomendações algorítmicas, então você nem precisa discutir música com seus amigos para saber o que eles gostam. O serviço sabe o que eles gostam, e você também pode saber sem falar com eles. A função da música como um tipo de cola e lubrificante social também está sendo eliminada?

Aplicativos de transporte urbano: A interação é mínima: não é preciso dizer ao motorista o endereço ou a rota preferida, nem interagir se você não quiser.

Carros sem motorista: em um sentido, se você está fora com seus amigos, não ter um de vocês dirigindo, significa mais tempo para conversar. Ou beber. Muito bom. Mas a tecnologia sem motorista também tem como objetivo eliminar os motoristas de táxi, motoristas de caminhão, motoristas de entrega e muitos outros. Existem grandes vantagens para a eliminação de seres humanos aqui – teoricamente, as máquinas devem dirigir com mais segurança do que os seres humanos, então pode haver menos acidentes e fatalidades. As desvantagens incluem perda de emprego maciça. Mas esse é outro assunto. O que estou observando aqui é o consistente padrão de “eliminar o humano”.

Pagamento automatizado: a Eatsa é uma nova versão do Automat, um “restaurante” já popular, sem equipe visível. A loja de conveniências local tem treinado o pessoal para nos ajudar a aprender a usar as máquinas de pagamento que os substituirá. Ao mesmo tempo, estão treinando seus clientes para fazer o trabalho dos caixas.

A Amazon vem testando lojas – até mesmo supermercados! – com compras automatizadas. Eles são chamados de Amazon Go. A ideia é que os sensores saberão o que você pegou. Você pode simplesmente sair com as compras que serão cobradas na sua conta, sem qualquer contato humano.

IAs: IAs são freqüentemente (embora não sempre) melhores na tomada de decisões do que seres humanos. Em algumas áreas, podemos esperar isso. Por exemplo, a IA sugerirá a rota mais rápida em um mapa, representando o tráfego e a distância, enquanto nós, como humanos, estaríamos propensos a tomar nossa rota-já-experimentada-e-sabida. Mas algumas áreas onde a IA é menos esperada ser melhor do que os humanos estão igualmente se abrindo. Estão ficando melhores em detectar melanomas do que muitos médicos, por exemplo. Muito trabalho jurídico de rotina será feito em breve por programas de computador, e avaliações financeiras já estão sendo feitas por máquinas.

Força de trabalho automatizada: as fábricas cada vez mais têm menos trabalhadores humanos, o que significa que não há personalidades para lidar, nem agito para horas extras, nem doenças. O uso de robôs evita a necessidade de um empregador pensar em seguros dos trabalhadores, saúde, segurança social, impostos indenização de demissão do trabalhador.

Assistentes pessoais: com um melhor reconhecimento de fala, pode-se conversar cada vez mais com uma máquina como Google Home ou Amazon Echo em vez de uma pessoa. As histórias divertidas abundam à medida que os erros são resolvidos. Uma criança diz: “Alexa, eu quero uma casa de bonecas” … e eis que os pais encontram uma em seu carrinho.

Big data: Melhorias e inovações no tratamento de grandes quantidades de dados significam que os padrões podem ser reconhecidos em nosso comportamento, onde eles não eram vistos anteriormente. Os dados parecem objetivos, então nós tendemos a confiar neles, e podemos muito bem vir a confiar mais nesse apanhado de dados pré-tratados mais do que em nós mesmos e em nossos colegas e amigos humanos.

Videogames (e realidade virtual): Sim, alguns jogos online são interativos. Mas a maioria é jogada em uma sala por uma pessoa conectada no jogo. A interação é virtual.

Compra e venda de estoque em alta velocidade automatizada: Uma máquina que cruza enormes quantidades de dados pode detectar tendências e padrões rapidamente e agir com mais rapidez do que uma pessoa pode.

MOOCS (cursos online abertos e massivos): educação on-line sem interação direta com professores.

Redes “sociais”: esta é uma interação social que não é realmente social. Enquanto o Facebook e outros freqüentemente afirmam oferecer conexão, e realmente oferecem a aparência disso, o fato é que muitas mídias sociais são uma simulação de conexão real.

QUAIS SÃO OS EFEITOS DE MENOS INTERAÇÃO? 

Minimizar a interação tem alguns efeitos impactantes – alguns deles bons, outros não. Exteriorizações da eficiência, alguém poderia dizer.

Para nós, como sociedade, menos contato e interação – interação real – parece levar a menos tolerância e compreensão da diferença, assim como mais inveja e antagonismo. Como já foi evidenciado recentemente, as mídias sociais realmente aumentam as divisões, amplificando efeitos de eco e permitindo que vivamos em bolhas cognitivas. Vamos alimentando o que já gostamos ou o que nossos amigos com preferências similares gostam (ou, mais comumente agora, o que alguém pagou para nós vermos em um anúncio que imita conteúdo). Desta forma, nós realmente nos tornamos menos conectados – exceto para aqueles em nosso grupo.

As redes sociais também são uma fonte de infelicidade. Um estudo realizado no início deste ano por dois cientistas sociais, Holly Shakya na UC San Diego e Nicholas Christakis em Yale, mostraram que quanto mais pessoas usam o Facebook, pior se sentem sobre suas vidas. Embora essas tecnologias afirmem nos conectar, o efeito certamente não desejado é que elas também nos separam e nos deixam tristes e invejosas.

Não estou dizendo que muitas dessas ferramentas, aplicativos e outras tecnologias não são extremamente convenientes, inteligentes e eficientes. Eu mesmo uso várias delas. Mas, em certo sentido, eles são contrários a quem somos como seres humanos.

Nós evoluímos como criaturas sociais, e nossa capacidade de cooperação é um dos grandes fatores de nosso sucesso. Eu argumentaria que a interação social e a cooperação, da natureza que faz com que nós sejamos quem somos, é algo que nossas ferramentas podem aumentar, mas não substituir.

Quando a interação se tornar uma coisa estranha e desconhecida, então teremos mudado quem e o que somos enquanto espécie. Muitas vezes, nosso pensamento racional convence-nos de que nossa interação pode ser reduzida a uma série de decisões lógicas – mas nem mesmo estamos conscientes de várias das camadas e sutilezas dessas interações. Como os economistas comportamentais nos contarão, não nos comportamos racionalmente, mesmo que pensemos que sim. E os Bayesianos nos dirão que a interação é a forma como revisamos nossa imagem do que está acontecendo e o que acontecerá depois.

Eu argumentaria que também existe um perigo para a democracia. Menos interação, mesmo a interação casual, significa que se pode viver em uma bolha tribal – e sabemos onde isso leva.

É POSSÍVEL QUE MENOS INTERAÇÃO HUMANA POSSA NOS SALVAR?

Os seres humanos são caprichosos, erráticos, emocionais, irracionais e tendenciosos no que às vezes parecem como jeitos contraproducentes. Muitas vezes parece que nossa natureza rápida e egoísta será a nossa queda. Há, ao que parece, muitas razões pelas quais tirar humanos da equação em muitos aspectos da vida pode ser uma coisa boa.

Mas eu argumentaria que, embora nossas várias tendências irracionais possam parecer inconvenientes, muitos desses atributos realmente funcionam a nosso favor. Muitas de nossas respostas emocionais evoluíram ao longo de milênios, e elas são baseadas na probabilidade de que elas, provavelmente, oferecerão a melhor maneira de lidar com uma situação.

O QUE NÓS SOMOS?

Antonio Damasio, um neurocientista da USC escreveu sobre um paciente chamado Elliot, que sofreu um traumatismo em seu lobo frontal que o tornou “desemocional”. Em todos os demais aspectos ele era ok – inteligente, saudável – mas emocionalmente ele era o Spock. Elliot não conseguia tomar decisões. Ele quebrava a cabeça infinitamente sobre os detalhes. Damasio concluiu que, embora pensemos que a tomada de decisões é racional e maquinista, são nossas emoções que nos permitem realmente decidir.

Com os seres humanos sendo um tanto imprevisíveis (bem, até que um algoritmo remova completamente essa ilusão), obtemos o benefício das surpresas, acasos felizes e conexões e intuições inesperadas. A interação, a cooperação e a colaboração com outros multiplica essas oportunidades.

Nós somos uma espécie social – nós nos beneficiamos de transmitir as descobertas, e nós nos beneficiamos com a nossa tendência de cooperar para alcançar o que não podemos estar sozinhos. Em seu livro Sapiens, Yuval Harari afirma que isso é o que nos permitiu ser tão bem-sucedido. Ele também afirma que essa cooperação foi muitas vezes facilitada pela capacidade de acreditar em “ficções”, como nações, dinheiro, religiões e instituições jurídicas. As máquinas não acreditam em ficções – ou ainda não, em todo caso. Isso não quer dizer que eles não nos superarão, mas se as máquinas são projetadas para se interessarem principalmente por elas mesmas, elas podem quebrar um obstáculo. E, entretanto, se menos interação humana nos permitir esquecer como cooperar, perderemos nossa vantagem.

Nossas eventualidades, inesperados e comportamentos singulares são divertidos – eles fazem a vida ser agradável. Eu me pergunto o que nos resta quando há cada vez menos interações humanas. Retire o humano da equação, e somos menos completos como pessoas e como sociedade.

“Nós” não existimos como indivíduos isolados. Nós, como indivíduos, somos habitantes de redes; Nós somos relacionamentos. É assim que prosperamos e florescemos.

David Byrne é músico e artista escocês residente em Nova Iorque; É conhecido no Brasil especialmente por ter liderado por anos a banda Talking Heads. Escreveu vários livros, e o seu mais recente é “How Music Works”. Uma versão desse texto apareceu originalmente em seu site, davidbyrne.com.

Escrito em 15 de agosto de 2017 e publicado eletronicamente no mês seguinte, pelo MIT em Technology Review.

Traduzido por Arnaldo V. Carvalho

Infâncias, gerações e um museu.

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Uma de minhas últimas fotos do MN, na minha ida de 31 de julho de 2018

Infâncias, gerações e um museu.

Arnaldo V. Carvalho

Sem que eu soubesse, minha mãe investia pesado em minha educação. Me ofertou muitas experiências, e dentre elas, pude conhecer museus, exposições, parques, praias, arredores montanhosos, natureza, a leitura e o teatro. No terceiro dia de minha dor e de meu luto pela perda do Museu Nacional, desejo compartilhar lembranças sobre este que fez parte da construção de quem sou hoje. E particularmente, da melhor parte de mim. Esse melhor que me permitiu estender a experiência às minhas filhas.

Minha mãe me levou algumas vezes ao Museu Nacional quando eu era criança. Lembro bem de sua entrada, do meteoro imenso. Lembro dos três dinossauros na entrada do segundo andar. Lembro do caranguejo gigante – a peça que eu mais gostava. E lembro do medo que eu sentia das máscaras rituais indígenas (fugia da ala indígena por causa delas), e do fascínio das exóticas cabeças encolhidas e secas. Ah, havia o setor dedicado às civilizações americanas… Incas, Maias e Astecas, com seus potes, adornos, urnas funerárias… Também havia múmias ali. A mais impressionante era uma preservada de forma natural. Uma possível mãe e seu bebê num cesto ao lado jaziam no amor eterno dessa relação. Se foram juntas, deixando seus corpos percorrerem o tempo (séculos?) até que fossem tragadas pela tragédia do incêndio. Nem tudo ali precisava ser muito grande ou muito antigo. Meus olhos de criança recebiam a explicação de minha mãe sobre os potes de lombrigas e oxiúros, que me davam asco e uma real percepção de que não queria aquilo me habitando – reforçando assim a importância da higiene alimentar. As múmias egípcias (de gatos, jacarés e pessoas) me causavam terror e êxtase. Lembro que olhava a múmia deitada, com seus pezinhos semi-descarnados, bem “de pertinho”, pois não precisava me abaixar para estar na altura de seu corpo. E lembro delas em outra fase, onde já tinha quase o tamanho que tenho e ela andou bem mal cuidada. Sim, de muitas alas e peças, me lembro do cheiro. Um cheiro que não voltei a sentir em outra parte, nem em museus como Louvre e Prado. Era uma antiguidade própria. Esse cheiro agora é só uma memória.

De minha infância para cá, o museu havia crescido. Vinha no rumo de aprender a atrair, de se modernizar… Encontrou-se com um fabuloso artista paleontológico, colocou réplica de fóssil de tiranossauro, expandiu a ala dos dinossauros, preservou melhor a área de arqueologia, salvando as múmias que estiveram num grave sufoco em tempos anteriores. O meteoro que desde o começo abria a exposição agora apresentava a ala do início da formação da vida na terra com auxílio de um belíssimo painel cósmico para fotos e novos fósseis vegetais. A coleção de história natural só foi ficando mais arrumada e bonita. Um sambaqui apareceu em destaque numa bela ala, logo após a Luzia. O museu criou acessibilidade, montou uma pequena exposição tátil, enfim, foi criativo, ousado e organizado. Tentou seguir respirando e tocando as pessoas, mesmo quando já não tinha fôlego.

Minhas filhas, todas elas, eu levei o quanto pude. As maiores chegaram a conseguir fazer uma leitura madura de diversos pontos do museu. Cada um em seu próprio ritmo de aproveitar… Revisitamos o caranguejo gigante, que com as mais novas (com cinco anos), aprendeu a “falar”. As menores conversaram, aliás, com a “múmia princesa”, com a lhama empalhada, com os crânios do hominídeos que fazem parte da história humana. Elas conversaram com eles e descobriram que a realidade do tempo e do espaço é tão imensa.

Eu e minhas filhas tivemos um grande privilégio em termos tido acesso, em nossas infâncias, a um museu a resumir o planeta, seus tempos e espaços. Possivelmente a grande maioria de nossa população jamais terá uma nova chance de um encontro tão forte e fidedigno, “abridor de lata” da lata da mente.

Meu desejo mais profundo é que essas experiências de ida ao Museu Nacional, que pude deixar a elas, assim como minha mãe deixou em mim, siga lhes ajudando a serem pessoas melhores. Agora, cada um de nós terá de levar consigo o pouco que conseguiu. Quem sabe vestir um chapéu imaginário de arqueólogo e vasculhar a mente, em busca de novos detalhes por entre as lembranças.

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Sou Arnaldo V. Carvalho, pai, terapeuta, educador, cidadão.

Direita ou Esquerda, sólido ou líquido

Na era Líquida, esquerda e direita exibem um desfile de antolhos sólidos

Por Arnaldo V. Carvalho

Depois que uma pessoa passa por uma educação com tanta imposição de filtros, sempre a pender para um certo lado, ela pode ler o que quiser… Vai seguir modulando tudo por esses filtros.

Há uma séria dose de leitura reflexiva, neutra, honesta, incapaz de ser feita nos meios atuais. Mesmo a ciência como queria Carl Sagan – capaz de perseguir a verdade para além dos ideais de uma cultura – anda contaminada por esse indômito uso de antolhos, colocados cada vez mais cedo, em bases cada vez mais graves.

Daí que o pêndulo direita e esquerda do campo político costuma esmagar relações e provocar ainda mais cegueira. Aos ponderados a procurar uma visão sem antolhos, a permanente crítica dos radicais: Há os que julgam que estes estão à esquerda, outros os pensam à direita, e existe os que acusam a ponderação de ser “em cima do muro”. É o que ilustra o vídeo do Leandro Karnal (vide abaixo).

No fim das contas, creio que vivemos numa terra de muito discurso e pouca leitura. Ou pior, acesso tardio a leitura.

O que estou dizendo pode ir para muitos lados. O fato é que a Modernidade Líquida de Bauman pode estar esbarrando num sério problema estrutural: o arcabouço que faz a sociedade e as relações humanas convergirem para a liquidez está “montada” por cima de um núcleo extremamente sólido… E neurótico.

Aos lúcidos, cabe a realista desesperança. Aos “extra-lúcidos” (ou que tal “translúcidos”), o movimento pela possibilidade dos seres humanos serem criados de outra forma.

De que forma? Isso dá uma tese. Mas vou gostar de saber das ideias dos leitores deste blog.

(Arnaldo)

 

* Arnaldo V. Carvalho, pai, terapeuta, pedagogo.

Orangotangos de Darwin… E nós mesmos.

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Ontem em pequeno intervalo, peguei na minha estante do consultório o livro “A expressão emocional dos animais”, escrito pelo Charles Darwin (1809-1882). Ele mesmo!

Adoro esse livro. Como desde sempre, o abri ao acaso. Lá estava Darwin, discorrendo sobre as expressões faciais e corporais do orangotango frente a um espelho recém colocado em sua área no zoológico.

Quanto mais leio Darwin – e vou fazendo isso há tempos –  me impressiono com a dedicação de Darwin a compreender os demais espécimes, como se a eles perguntasse continuamente: me ajuda a descobrir quem ou o que sou?

(Arnaldo V. Carvalho)

Avenues, Schumacher School e Guilherme Boulos: Uma nova ascensão de intelectualidade orgânica?

ou… Os jovens de agora e os Yuppies do futuro farão a diferença?

Por Arnaldo V. Carvalho*

Antonio Gramsci estaria descabelado com as novas formas de capitalismo que tomam conta do planeta… Mas esperançoso com os também novos movimentos reivindicativos, que organizam massas e resistem, e têm como diferença a forte presença do que chamava ele de “intelectualidade orgânica”: Gente oriunda de condições socioeducativas de mais qualidade, capazes de, para além de uma análise profunda e abrangente das diferentes situações, colocar a mão na massa, engajar, e fazer a diferença. São lideranças de coletividades inteiras, “lideranças preparadas”. É o que vemos no Brasil, por exemplo, no trabalho de Guilherme Boulos junto aos movimento dos sem teto: filósofo, psicanalista, e militante desde os quinze anos, ele representa uma leva de jovens que enxergam os males do sistema em que vivem para uma parcela de pessoas que é maioria absoluta. São jovens que estão hoje na busca não por “seu pirão primeiro”, mas pelo “Nós”.

Alguns desses, encontram-se engajados na política, e quase sempre, engrossam fileiras de partidos mais inclinados às causas dos desprivilegiados (porque “trabalhadores” não são só os pobres). Na Espanha, os movimentos populares deram origem ao “Podemos“, que é dirigido por um cientista político e ultrapassa as velhas ideias de “direita e esquerda”. Por aqui, com todas as críticas, vemos partidos como PSOL ou novos movimentos políticos apartidários, como Agora! e diversos outros, recebendo levas cada vez mais significativas de professores universitários, etc. Compenetrados em observar a sociedade a partir de um olhar “cientificamente menos egoísta”, ou para fora das estruturas socioeconomicas vigentes, essas pessoas são capazes de agir em perspectiva , na certeza de que o enfrentamento ao status quo é da máxima urgência para o futuro da humanidade.

Se um jovem de classe média ou alta, que tem acesso à boa educação, se sensibiliza com causas sociais e ambientais (vamos lembrar que essas causas são na verdade uma só), e decide fazer algo, imagine se desde criança elas já crescesse desenvolvendo esse tipo de consciência e proatividade.

Pois é o que começa a acontecer em todo o planeta, com as “superescolas”, que apostam em uma formação com ênfase em conceitos como cosmopolitismo, sustentabilidade e nova economia. No Brasil, já aportam Iniciativas globais como a Schumacher School, celeiro de educadores e educandos “holísticos”, ou a Avenues, escola para os filhos das elites (as mensalidades custam em torno de R$10.000,00), que prepara a criança para o mundo – literalmente, desenvolvendo habilidades de liderança com – em princípio – preocupações ambientais, sociais e mesmo existenciais.

Surgirá daí um coletivo de intelectuais orgânicos para fazer o sonho de Gramsci se tornar realidade?

Talvez disso dependa, para além de conteúdos oferecidos por uma escola, de uma farta oferta de carga emocional amorosa – capaz de preservar a latente sensibilidade que nasce com cada ser humano, e se não suspensa por mecanismos culturais, torna um indivíduo com sentimento de vínculo em relação a sua própria espécie homo sapiens (1). Em outras palavras, a educação formal possivelmente precisa estar associada à uma criação onde o potencial afetivo possa seguir sua direção natural. E quanto a isso, se não há escola, há iniciativas, métodos e discussões, como vemos por exemplo no trabalho da API – Attachment Parenting Internacional, que versa sobre criação com “apego” (sentimento de vínculo)(2).

Vamos torcer para que esses futuros novos “yuppies cosmopolitas” realmente cresçam não focados em aumentar os patrimônios de suas famílias, mas conscientes, desejosos de ver o mundo melhorar para além de seus umbigos protegidos por carros blindados e muros de condomínios de luxo – e dispostos a agir para isso.

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(1) Ver ODENT, Michel. Pode o homem sobreviver a medicina? Rio de Janeiro: IMO, 2017.(2) No Brasil, o API é representado pelo educador parental Thiago Queiroz.

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* Arnaldo V. Carvalho, terapeuta, pai, aprendiz de pedagogo, cidadão do mundo.

 

83 anos de medo, dor, abandono, sofrimento e ódio.

Sugestão de músicas para ouvir enquanto lê esse texto: “Sound of Silence“, “Blackbird“, “Guaranteed” e ou “One day at a time

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/21/Charles-mansonbookingphoto.jpg

A morte do marginal Charles Manson aos 83 anos mais uma vez traz à mídia o retrato de uma sociedade doente

Arnaldo V. Carvalho*

Ainda mais para quem não é americano, os crimes e [demais] loucuras cometidos pela chamada “Família Manson” no final dos anos 60 já jazia na poeira do tempo, até que a imprensa publicitou sobre a morte de seu protagonista maior, Charles Manson.

Nos cientes de sua existência, a sensação geral foi de alívio. Em mim, apenas um baixar de olhos, porque confesso, espelhei suas sombras nas minhas.

Eu conheço a raiva do mundo, da vida, da dor e do prazer. Fui uma criança explosiva, brigona, com uma solidão estranha, levada para depressões na juventude; e tive muito, muito medo de tudo. Raiva é medo disfarçado. Ou é filha do medo. Me acredito quase “salvo”, porque o amor das pessoas que me criaram me salvou. Aqui, destaco meus irmãos com paciência infinita, que me neutralizavam quando eu muito pequeno os atacava com toda a minha força física e falavam baixo para só me liberarem quando eu me acalmasse. Isso me deu contornos, limites, e me manteve sóbrio. Mesmo assim, meu destempero eclodiu muitas vezes ao longo dos anos e ofendeu as pessoas que mais amei nessa vida.

Eu seria diferente de Manson se tivesse sido rejeitado desde a concepção, e estuprado, violentado, drogado, tudo desde sempre? Eu teria morrido, de um jeito ou de outro.

Se conseguirmos por um segundo esquecer acerca de todo o mal que sua vida doentia conseguiu proporcionar à Vida: pensando apenas no sofrimento acumulado, 83 anos é pesado muita, muita coisa. Não sei como ele viveu. Não sei.

Mas sei que para sobreviver com um background desses, rompe-se com cultura, normalidade, com a razão e com a emoção. No lugar dele, duas possibilidades são aparentemente as únicas possíveis ao corpo-mente: pelo menos um dele tem que morrer. Se não é o corpo arrebatado pela energia anti-vida, então será a mente. O X na testa que Manson se fez dizendo-se “estar fora” daquela sociedade, daquela jurisdição, daquele mundo, já estava feito há tanto tempo em seu coração. O corpo encarcerado por tantas décadas era o de um natimorto-vivo, o mais atormentado dos zumbis, cujo destino tornou-se devorar mentes e levar outros a conhecer o inferno com ele, durante toda a sua longa existência e até o fim. Me surge uma primeira pergunta: Psicopatas serão sobreviventes físicos de recônditos profundos de almas torturadas e mortas mesmo antes do nascimento?

A força de um “ninguém”

Notem, usei no título o termo “marginal”. Nada mais apropriado: Manson ficou à margem da sociedade desde seu nascimento. Uma vez perguntaram a ele “quem era Charles Manson”. Caretas depois, ele disse: “ninguém”. É o que ele foi, desde sempre.

Manson já era “menos um” há tempos. Me preocupo com os “ninguéns” soltos por aí, influenciando pessoas, semeando a trágica doença da perversidade silenciosa e oculta. Me preocupo com os ninguéns sendo neste momento fabricados por essa sociedade bizarra. E estou atento a meus ninguéns e os de vocês, pessoas “normais” que me leem.

São Mansons que promovem o “Jogo da Baleia Azul”, são Mansons que ensinam adolescentes a se cortarem para “aliviar sofrimento”, são Mansons os que misturam hoje prazer com humilhação, e espalham em mais de cinquenta tons de cinza a ideia de prazer misturado com dor. Nesse instante, eles estão na Grande Rede, aliciando menores, incitando à morte por assassínio ou suicídio, incentivando aos jovens que se apartem de vez de suas famílias. Eles estão usando a solidão depressiva dos jovens que estão desprovidos de referências adultas concretas (porque os pais são ausentes, trabalhando o dia inteiro, ou formaram outras famílias, ou ou ou…). E para concluírem seu intento, de formar novos Mansons iguais a eles, sugerem toda a forma de descaracterização da pessoa como parte da vida coletiva. Descaracteriza-se o gênero, consome-se substâncias ilícitas ou aparentemente ilícitas, ouve-se músicas que reforçam o mote, usam-se redes sociais que não as gerais, cria-se um “submundo” onde eles são acolhidos.

A “promessa” Manson é a promessa do Fauno, com desafios e uma espécie confusa de valorização da condição do abandonado, presa fácil uma vez que caia no labirinto emocional oferecido por pessoas assim.

Para o mundo, o demonio-marginal Charles Manson, parafraseando Gentileza, era um ninguém indigesto. Uma verdade inconveniente. Porque ele é mais um produto de nossa sociedade que como disse Tomio Kikushi, não é somente louca, mas enlouquecedora.

Resposta reichiana

Manson mostrou ao mundo como um ninguém pode se tornar uma ameaça. O psiquiatra Wilhelm Reich (1897-1957), pouco antes de Manson nascer, tentou precaver a sociedade sobre a “peste emocional”, o ninguém que vive nas pessoas, e que quando “assume o controle” – é o caso – possui um poder destrutivo e contaminante.

“… olhando prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: ÉS TU TEU PRÓPRIO NEGREIRO” . (REICH, 1974, p.24)

Ele estudou como esse mal coletivo se forma e espalha, e apontou soluções. Mostrou o caminho do Amor Natural e ao mesmo tempo, denunciou o “Pequeno Homem”* que nos habita, e é oriundo do medo e da repressão. Mas não foi ouvido. Otimista, o Reich da década de 1930 errou quando previu que a sociedade de cinquenta anos depois poderia estar mais preparada para o que ele tinha a dizer. Seguimos afastados do amor, reprimidos, hipócritas, e com isso perversos, cruéis, violentos, doentes sexualmente, psiquicamente, corporalmente.

A estruturação sadia da psiquê parece ter um limite sensível às experiências vividas, e talvez por isso eu não conheça uma biografia de gente que nasceu e cresceu em condições tão brutais e terminou bem (saudável, inclinado à vida, e a inspirar outras vidas). É possível manter-se são mesmo após grandes sofrimentos, e nem é preciso recorrer à exemplos místicos como Jesus Cristo, Buda ou Krishna (todos nascidos e criados com amor); temos muitos mártires e heróis contemporâneos que nos provam isso. Mas eles conseguiram porque já estavam estruturados. Convido ao leitor a me apresentar uma grande pessoa que tenha sido condenada ao nada desde sempre.

O questionamento, então, passa a ser: quando a sociedade vai abrir os olhos para o impacto do nascimento, da força do Amor, incluindo o contorno do limite infantil que também é expressão de afeto e interesse verdadeiro pela criança?

Ou pior: quantos Charles Mansons ou mais grave, quantas famílias Mansons seguirão sendo formadas até que a sociedade finalmente se liberte das velhas fórmulas morais, punitivas e adoecedoras das almas?

Na restauração da sanidade coletiva da humanidade, a única revolução possível, e a única saída para o caos crescente segue sendo Ele, o Amor.

***

* Um livro simples, direto e esclarecedor sobre esse “ninguém” que há em nós foi escrito por Reich em 1948 e traduzido no Brasil como “Escuta, Zé Ninguém“. Antes disso ele já falava da doença anti-vida, em publicações como a “Psicologia de Massas do Fascismo”, de 1933, entre outros, e depois, em 1952, o “Assassinato de Cristo”, mais uma grave denúncia à peste emocional deflagrada pela coletividade de “Ninguéns”. Reich antecipava os passos de Charles Manson, e isso rende outro e bem mais complexo artigo.

Maddox Manson, mais Mad do que manso. Louco, psicopata, “do mal”. Quantos Mansons existem hoje por aí, promovendo mortes de almas inteiras?

 

Para saber mais sobre Charles Manson

Charles Manson, o assassino mais infame do mundo, morreu. Tinha 83 anos, passou os últimos 46 na prisão

https://books.google.com.br/books?id=IYidCwAAQBAJ&pg=PT334&lpg=PT334&dq=entrevista+maddox+manson&source=bl&ots=on68aMf5p8&sig=c8PNAPEDu8o2lWqbO72kgxtXa1k&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiSoM-FitDXAhWEgJAKHdeBCBsQ6AEIJzAA#v=onepage&q=entrevista%20maddox%20manson&f=false

http://sicnoticias.sapo.pt/mundo/2017-11-20-Charles-Manson-lider-de-seita-psicopata-assassino-um-dos-criminosos-mais-perigosos-da-America

http://fenix1374.blogspot.com.br/2013/03/charles-milles-maddox-manson-nascido-em_20.html

http://justificando.cartacapital.com.br/2014/11/26/charles-manson-louco-ou-genio-crime/

 

 

Não há quem detenha a voz humana

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“Tinham as mãos amarradas, ou algemadas, e ainda assim os dedos dançavam, voavam, desenhavam palavras. Os presos estavam encapuzados; mas inclinando-se conseguiam ver alguma coisa, alguma coisinha, por baixo. E embora fosse proibido falar, eles conversavam com as mãos.

Pinio Ungerfeld me ensinou o alfabeto dos dedos, que aprendeu na prisão sem professor:

— Alguns tinham caligrafia ruim — me disse —. Outros tinham letra de artista.

A ditadura uruguaia queria que cada um fosse apenas um, que cada um fosse ninguém: nas cadeias e quarteis, e no pais inteiro, a comunicação era delito.

Alguns presos passaram mais de dez anos enterrados em calabouços solitários do tamanho de um ataúde, sem escutar outras vozes além do ruído das grades ou dos passos das botas pelos corredores. Fernandez Huidobro e Mauricio Rosencof, condenados a essa solidão, salvaram-se porque conseguiram conversar, com batidinhas na parede. Assim contavam sonhos e lembranças, amores e desamores; discutiam, se abraçavam, brigavam; compartilhavam certezas e belezas e também dúvidas e culpas e perguntas que não tem resposta.

Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada.

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. L&PM

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As raras saudades de Niterói… e um desejo pinoquiano.

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Moro no Rio há uns poucos anos.

É a primeira vez que tenho saudades de Niterói.

Não é a cidade. Não é o que tem lá. É a vida, a origem: minha mãe, minhas filhas.

Deu vontade de voltar. Mas como?

A razão me fez sair. A emoção queria de volta o que jamais poderia ser.

Dos prodígios, à saudade de casa, minha viagem se conclui com o filme I. A., cujo final acidentalmente me chegou quando liguei a TV.

Minhas memórias de anos atrás haviam registrado o que se passou na história de Spielberg, somente até o encontro do protagonista (o menino android David) com o futuro distante: muitas eras se vão, ele é resgatado do gelo, seres evoluídos lhe confortaram. Nada mais.

Comecei a assistir exatamente dessa parte – o “The End” que ficara registrado em minha mente. Esperei anos para talvez dar a importância devida ao final programado para a película.

Lembrava que o todo do texto de I. A. era excepcional. Revendo com os olhos de hoje, digo que é ainda melhor. No instante em que revi a passagem final, ela ressonava em meu instante, em minha saudade. Naquilo que nunca voltará.

Chorei. Chorei como a criança que David sonhara ser. Fui humanamente criança naquele instante. Uma simples criança que por um instante só queria estar de volta. Ao lar, aos braços e colos e abraços de sua mãe.

O menino David tem seu dia final com a mãe, e faz dele o dia perfeito. Ao final, adormece com as palavras: “eu te amo. sempre te amei”.

Concluí (e desejei), em meio às lágrimas, que terminar assim é mesmo um bom sono; e um bom fim.

“E pela primeira vez, ele foi para o lugar onde os sonhos nascem”.

Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2017

Arnaldo V. Carvalho

 

 

Questões de direito humano

Em 2005, Eliane Brum entrevistou para a Época o Dr. Diaulas. E eu li. E me impressionei. O então promotor lida de forma muito sóbria com temas delicados, cujas discussões não podem ser simplificadas.

Da entrevista (que segue abaixo) para hoje, Diaulas seguiu sua carreira pública e ano passado, aos 54 anos, foi nomeado desembargador do TJDFT. Em paralelo, a vida acadêmica é profícua, e inclui participação em grupos de pesquisa, a escrita de artigos, a atividade docente e diretora. De fato, seu curriculum lattes demonstra uma atividade febril. Pós doc que coordena o curso de direito respeitadíssima UCB, e ao mesmo tempo integra o comitê de ética da faculdade de medicina da UNB, é membro de conselhos editoriais sérios, enfim. É um currículo não somente político, como se costuma esperar dos advogados que galgam posições como a que ele se encontra.
Image result for as sessoes helen huntForam doze anos da entrevista abaixo para cá. E os assuntos nela contidos seguem como tabu no Brasil. Nem mesmo com a exibição do primiadíssimo filme “As Sessões” (já fica a indicação!), em 2012, questões como a sexualidade de deficientes, e o surgimento de uma demanda profissional especializada que ofereça alternativas concretas à questão permanecem no silêncio da sociedade.
Segue a entrevista, para abrir a cabeça de quem nunca pensou sobre tais assuntos, e quem sabe trazer a superfície das casas conversas sobre uma sociedade que respeita as diferentes condições humanas.
(Arnaldo)

Autor de interpretações ousadas da lei, ele se prepara para enfrentar dois tabus: eutanásia e sexo para pessoas com paralisia cerebral

O promotor do Distrito Federal Diaulas Costa Ribeiro tornou-se uma voz singular no mundo pouco permeável a mudanças da Justiça brasileira. A Pró-Vida, promotoria de Direito Médico e Biodireito, idealizada e coordenada por ele, autoriza há anos a troca de sexo para transexuais e a interrupção da gestação de fetos sem cérebro. Com o mesmo empenho, já processou dezenas de profissionais de saúde por erros médicos. Entre os casos mais famosos, destacam-se o do ex-presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana Joaquim Roberto Costa Lopes, que deixou uma paciente em estado vegetativo, e o da acusação por duplo homicídio do falso cirurgião plástico Marcelo Caron.

Corajoso, polêmico (e vaidoso em igual medida), Diaulas coleciona na mesma proporção fãs e desafetos. Popular pelos temas que enfrenta, é um caso raríssimo de homem da Justiça que distribui autógrafos pela rua. Nascido na roça, alfabetizado pela tia, ex-datilógrafo e ex-bancário, orgulha-se de ser dono de uma biblioteca com alguns milhares de livros jurídicos. Entre as preciosidades, uma edição francesa de 1883 de Madame Bovary, composta do romance e do processo por imoralidade movido contra seu autor, Gustave Flaubert, pelo governo da França. Da Europa, onde mantém um intercâmbio acadêmico com diversas universidades, vem a base jurídica para as interpretações mais ousadas da lei. Mas são as pessoas que batem à sua porta com queixas variadas que lhe dão a percepção das necessidades do novo século não-contempladas numa leitura mais ortodoxa do Código Penal.

Diaulas se prepara agora para botar a mão em dois vespeiros: a eutanásia e a garantia de acesso ao sexo por pessoas com paralisia cerebral. Como tudo o que faz, espera muito barulho no caminho. Na segunda-feira, embarcou para uma temporada acadêmica de três meses na Europa, onde dará aulas de Direito Penal no programa de pós-graduação Erasmus Mundus, da União Européia. Antes, recebeu ÉPOCA em sua casa, em Brasília, para a seguinte entrevista.

Diaulas Costa Ribeiro

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Dados pessoais
Mineiro de Monte Carmelo, solteiro, 42 anos, uma filha

Carreira
Promotor do Distrito Federal, idealizador da Promotoria Pró-Vida, sobre temas de Direito Médico e Biodireito, doutor em Direito Penal pela Universidade Católica Portuguesa, pós-doutor em Medicina pela Faculdade Complutense de Madri, seis livros publicados sobre Ministério Público e Biodireito

ÉPOCA – O senhor mexe com as grandes questões da Bioética. Quando e como percebeu que estes são os temas que iriam desafiar a Justiça?
Diaulas Costa Ribeiro –
Quando estava na Europa, fazendo o doutorado, nos anos 90. Saí do Brasil com essas idéias, mas só lá fora percebi que havia interesse em me ouvir. Percebi que os problemas do século XXI seriam de inserção e proteção de Direitos Humanos. Questões sobre como é duro ter sido estuprada e ter de abrir mão de sua intimidade para ir à Justiça pedir autorização para abortar. Sobre como deve ser triste você ter uma falta de sincronia entre seu corpo e sua sexualidade e descobrir que você não é gay, não é homem, não é mulher, não sabe quem você é. Sobre como é triste não ter o direito de decidir o lugar de sua morte, se vai ser numa UTI ou em sua cama, com a pessoa que você gosta segurando a sua mão. Percebi que a Justiça nunca havia pensado nesses temas e que, logo, teria de dar respostas a estas novas demandas. Comecei então a fazer um plano para o Ministério Público, que na minha volta resultou na Pró-Vida, uma promotoria de Direito Médico e Biodireito, com dois médicos-legistas e um odontolegista, além de uma equipe de apoio. Investigamos 90% do que mandamos para a Justiça. As pessoas chegam sem advogado, sem marcar hora, falando a língua que sabem.
ÉPOCA – O senhor vai criar um protocolo para garantir o acesso ao sexo a pessoas com paralisia cerebral grave. Como será isso?

Diaulas – Nós defendemos direitos sexuais para todo mundo, para os presos na cadeia, os adolescentes da Febem. Mas ninguém pensa que as pessoas com lesões cerebrais têm sexualidade normal, têm desejo, têm ereções, têm loucuras. Elas têm uma aparência física que pode não ser bonita, têm automatismos, muitas não têm coordenação motora para se masturbar. Estes são os verdadeiros excluídos da sexualidade. Familiares começaram a me procurar para contar essas histórias, uma mãe me contou, morrendo de vergonha, que é obrigada a masturbar o filho. Pais disseram que levam os filhos a prostitutas e têm medo de ser presos por isso. Então comecei a pensar no que poderia fazer por essas pessoas, em como garantir o direito fundamental que é o do exercício da sexualidade. Pelo Artigo 227 do Código Penal, o pai ou a mãe que levarem seu filho a uma prostituta podem ser condenados a até três anos de prisão pelo crime de mediação (”induzir alguém a satisfazer à lascívia de outrem”). Mas tornar possível o exercício da sexualidade para alguém que não tem outro meio de exercê-la não é prostituição. O papel do MP, neste caso, é viabilizar o acesso e afastar o crime. Vou fazer um protocolo em que o MP se torna o avalista deste excludente de crime, mostrando que não há tipicidade penal neste caso. A figura jurídica que ampara esta tese é a do estado de necessidade, o mesmo que permite o furto de um pão para comer. A Organização Mundial da Saúde preconiza que saúde não é falta de doença, mas o bem-estar físico e mental. Portanto, esta será uma conduta de saúde.
”Uma mãe me contou que é obrigada a masturbar o filho, pais
disseram que levam os filhos a prostitutas e têm medo de ser
presos por isso. O papel do MP é viabilizar o acesso e afastar o crime”
ÉPOCA – Mas como isso vai funcionar na prática?
Diaulas –
Vou procurar as associações de profissionais do sexo e fazer uma triagem, com um cadastro das mulheres que aceitam ter relações sexuais com esse tipo de paciente. Por outro lado, vamos reunir as famílias que querem esse tipo de serviço. E então criar condições de segurança, com a garantia de controle de saúde e o uso obrigatório de preservativos. No primeiro momento, vou iniciar com pessoas com paralisia cerebral, homens. Depois, pretendo ampliar para doentes mentais, o que deve causar maior resistência. E, se houver demanda para isso, vou estender o programa para mulheres com o mesmo tipo de problema. Vou aproveitar esta viagem à Europa – e quero esclarecer que todas as despesas saem do meu bolso – para visitar programas semelhantes. Um deles, na Holanda, foi criado por uma enfermeira para garantir sexo a pacientes com problemas neurológicos. O hospital local fez um convênio com o serviço. E os pacientes são recebidos com carinho. Neste caso, não é comprar sexo, mas cuidado.
ÉPOCA – Não há risco de o MP ser chamado de cafetão?
Diaulas
– Essas pessoas não têm cidadania senão aquela que a gente consegue imaginar para elas. Não estou preocupado com preconceitos. Já enfrentei isso com a luta dos transexuais. Temos de humanizar o debate. Eles não são bonitos como astros de cinema, mas têm desejo. Quem for contra que faça a experiência de suspender sua vida sexual para se colocar no lugar deles. Não o celibato por opção, mas o compulsório. Quem nunca teve impulso sexual que atire a primeira pedra.
#Q#
ÉPOCA – O senhor defende o papel social da prostituta…
Diaulas
– Sou contra a prostituta escravizada, explorada, que tem um rufião. Minha idéia de prostituta é a que tem um papel social. É uma profissão como qualquer outra. Sei que o movimento feminista pode entender mal o meu projeto, mas a prostituta não vende a si mesma nem vende suas partes sexuais ou o seu corpo. Vende seus serviços. Não há nenhuma diferença entre ela e qualquer outro prestador de serviços. Quem protesta dizendo que a prostituta é humilhada ou degradada não é capaz de compreender qual é o objeto desse contrato. O corpo e a dignidade da mulher não são oferecidos ao mercado. Ela pode contratar a prestação dos seus serviços sem que o faça em detrimento de si mesma. Não há sequer incompatibilidade entre a preservação dos Direitos Humanos e a prestação remunerada de serviços sexuais por pessoa adulta. Ofensa aos Direitos Humanos é restringir a autonomia e a liberdade das mulheres a esse negócio.
ÉPOCA – O senhor teve iniciação sexual com uma prostituta?
Diaulas –
Tive. Eu vivia na zona rural e isso era normal. Foi uma pessoa muito importante naquele momento da minha vida. Eu era um menino de 12 para 13 anos, não sabia nem por onde começar a coisa e ela disse: vem cá que eu te ensino tudo, não se preocupe com nada, deixe as coisas acontecer. Uma pessoa humilde, modesta, muito simples, que era tudo o que eu precisava naquele momento. Compreendeu a minha angústia. E me ajudou. Não tenho preconceito contra isso. Depois da maioridade, nunca mais saí com prostitutas no Brasil. E aqui eu coloco uma vírgula, porque vivi no estrangeiro por anos, não vou dizer que não fiz minhas estripulias por lá. No Brasil sempre tive namoradas. Mas, quando precisei de prostitutas, fui muito bem atendido.
ÉPOCA – Mudando de assunto, o senhor afirma que Terri Schiavo não é um caso de eutanásia, mas de Suspensão de Esforço Terapêutico (SET). A diferença é semântica?
Diaulas –
A eutanásia pode ser vista como um gênero de assistência à saúde no fim da vida, mas não foi essa a idéia inserida na opinião pública. Virou sinônimo de nazismo, de matar velhinhos e doentes. Da mesma forma que a palavra aborto virou um monstro, as pessoas fazem sinal-da-cruz quando a ouvem. É preciso tirar o estigma da expressão ou encontrar uma expressão paralela. Não adianta seguir neste caminho, com palavras como ortotanásia ou distanásia, o sufixo ”tanásia” causa arrepios. É preciso criar soluções novas e inteligentes para fenômenos mais antigos. É como uma empresa que está desgastada na opinião pública e pode continuar a mesma se trocar de nome. Esta será minha próxima bandeira.
ÉPOCA – No que consiste a SET?
Diaulas –
Primeiro, não é crime. Não há reação contra a vida. É a natureza que extingue a vida no seu caminho normal. A SET evita a medicalização da morte. As pessoas já estão mortas, mas são mantidas por equipamentos, transformando o que é chamado de ”boa morte” numa morte horrorosa. Isso é aceito em todo o mundo, em nome da autonomia do paciente. No Brasil também existe base jurídica para isso, mas nunca foi feito do ponto de vista formal. As decisões ocorrem na esfera privada da família, dentro de casa. Estamos preparando um protocolo para a SET, com médicos e bioeticistas, formando uma linha para entrar nesse assunto com bases formadas.
ÉPOCA – O que há por trás dessa obsessão pela vida a qualquer preço?
Diaulas
– Os espanhóis chamam essa obstinação de manter o paciente vivo sem vida de ”encarniçamento terapêutico”. Ou seja, reduz a pessoa à carne pura, não à alma. Deixam de ser gente e são reduzidos a um monte de tecidos. O coração bate, mas a pessoa já desapareceu há muito tempo.
ÉPOCA – Por que é tão difícil aceitar a morte?
Diaulas –
Primeiro porque as pessoas passaram a acreditar que existe vida eterna na Terra. Segundo, porque a Medicina passou a dar a idéia de que era possível a vida eterna na Terra. As pessoas começaram a entender a Medicina como um instrumento de vida e esqueceram que o médico é fundamental na morte. A morte passou a ser uma falência da estrutura social, da obra divina ou da Ciência. Esqueceram que a vida eterna só existe se houver uma perspectiva religiosa, mas essa possibilidade não existe para a Ciência. Morrer é muito triste, mas gera muito mais angústia se você viver numa cultura que divulga a idéia de que morrer é inaceitável.
ÉPOCA – Morrer virou antinatural?
Diaulas –
Exato. A coisa mais natural da vida virou antinatural. Um sacrilégio, um pecado. Temos de repudiar a morte através do trauma, da guerra civil que vivemos no Brasil. Mas não a ”morte oportuna”, em que morrer é chegar também a um bom porto, ao outro lado do rio.
ÉPOCA – Essa resistência tem a ver com uma idéia de Medicina que encara a morte como fracasso?
Diaulas –
Os médicos foram educados para ser deuses e a morte é a prova de que são humanos. Não têm culpa de ser arrogantes, são formados pelas faculdades de Medicina para ser arrogantes. Os modelos de ditadura foram caindo um a um. Na política, dentro de casa, onde o chefe de família perdeu o lugar, até a ditadura de Deus caiu. Tudo é negociado. Você faz uma troca, uma promessa, pede uma coisa, dá outra. O último foco de ditadura é o do médico com o paciente. O médico manda, o paciente obedece. Os médicos precisam ser formados para estabelecer dois diálogos. Um com o paciente, outro com a morte. Deixar transparecer que vão estar ao lado do paciente quando chegar o momento em que não vão mais poder fazer nada. Estar ao lado também para ajudar a morrer. A SET entra na esfera do direito clínico, um direito novo da relação médico-paciente na condução do diagnóstico e do prognóstico. É a expressão da autonomia, um conceito já bem fundamentado. Aceito esse remédio, não aceito a intubação, quero ou não quero oxigênio. E assim por diante. Do que é necessário ter certeza é sobre a vontade do paciente. Se ele não a deixou expressa numa escritura pública, num testamento vital, então é preciso provar por testemunhas qual era o desejo dele. Estou sendo procurado por pessoas que contam que seu pai ou mãe morreu na UTI pedindo para ir para casa. Mas a maior parte de nossa clientela não serão velhos, mas jovens, vítimas de trauma. ASET é um ato médico de cuidado.
ÉPOCA – O senhor não teme novos problemas com a Igreja Católica?
Diaulas –
Quem me estimulou a tocar esta questão adiante foi o papa João Paulo II, com seu exemplo, ao deixar o hospital para morrer no Vaticano, perto de quem gostava, sem aceitar o esforço terapêutico. Essa última encíclica silenciosa será a mais importante para o mundo não-católico. Sem dúvida, uma grande contribuição para a causa.
FONTE: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI50183-15228,00-DIAULAS+COSTA+RIBEIRO+PROMOTOR+DE+POLEMICA.html

Marcel Marceau, dança, terapia e eu

Marcel Marceau, dança, terapia e eu

Por Arnaldo V. Carvalho*

Quando criança, era deslumbrado com o controle corporal e suas ilusões de movimento. Minhas primeiras lembranças mais organizadas (cinco, sei anos de idade) são permeadas pelo fascínio pela mímica, apresentada por minha mãe, com referências, é claro, a Marcel Marceau.

Nos anos 70, década em que nasci, Marceau passou pelo Rio de Janeiro, apresentando-se na Monsieur Pujol (casa de espetáculos do falecido Miele). Também teria quadros exibidos no “Fantástico”… O pantomimo estava no auge, o mundo se encantava, e eu, tão pequeno, simplesmente não sabia mas respirava tal encanto.

Como eu gostava de empurrar paredes invisíveis e sentir-lhes a forma! Foi natural que já maiorzinho, “criança anos 80”, tivesse, através deste gosto Marceaunesco o apreço por Michael Jackson, que à época lançava seu Moonwalker e os sucessos “Billy Jean”, “Bad” e “Thriller”. E não é que Michael também era fã de Marceau?

O “break-dance”, filho do soul e do funk, pai do Hip-hop e do Rap estava nascendo e eu comprava revistas que ensinavam o passo-a-passo de manobras, entre as quais me atraiam as que simulavam o “robô” – pura mímica dançada.

A adolescência veio e me distraiu com a descoberta do amor, com acampamentos, esportes, e com escola (a “má distração”)… Mas do coração a mímica nunca saiu.

Em 1997 tive minha grande oportunidade de assistir Marcel Marceau no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e compreendi profundamente o sentido da materialização pelo vazio. O silêncio e o movimento me fizeram rir e chorar, e hipnotizado e agradecido, saí do teatro com uma lembrança eterna.

A mímica inspira a dança, e a dança inspira o Shiatsu

Nesse momento eu já praticava Shiatsu, e pouco depois estudei um pouco de ballet, jazz e sapateado, em paralelo com outras formações corporais terapeuticas. Conheci e tornei-me fã da obra do mestre Kazuo Ohno, da dança Butô (mesmo mais velho, Ohno fez aulas com Marceau, vejam só). E ao mesmo tempo, ao longo desses anos, segui estudando diversos trabalhos de contato corporal. Foi assim que passei pela massagem thai, o lomilomi, a massoterapia ocidental, espondiloterapia, ayurvedica, aromaterapia, drenagem linfática e outros. Mas foi o professor de Ohashiatsu Marco Duarte, bailarino, que me apontou o caminho para que eu encontrasse a dança dentro de minha terapia. Ohashi é o maior mestre vivo de Shiatsu, e trouxe para a terapia uma organicidade inédita, um sistema de movimentação que é base para todas as demais formas de expressão e estilos de Shiatsu fluídos.

Mesmo assim, mesmo com tantas formações, eu queria mais. Queria descobrir um corpo diferente daquele visto pela terapia, pois em minha área, chega a um momento em que sentimos como se todas terapias se repetissem – já não há nada novo, porque o corpo é um só, e no fim das contas, as terapias corporais são apenas variações de umas poucas fontes originais(1).

Para seguir crescendo, percebi que precisava ir para fora da terapia, precisava ir ao corpo são, ao corpo expressivo, às possibilidades ainda não exploradas… E lembrei da mímica. E foi ali que, na busca por ela, encontrei o mímico Alberto Gaus e o Solar da Mìmica. Descobri um outro gênero expressivo, e o trouxe para a terapia.

Foi assim que, aos poucos, a mímica em mim inspirou a dança, que fez imergir a terapia para dentro da alma; e a terapia, finalmente, se percebeu impossível fora do contexto de uma relação – da superfície da racionalidade e das palavras, à imensidão oceânica do inconsciente eu-outro. Se terapia é relação, se faço dela uma dança onde convido meus atendidos a dançar a Dança da Vida, então ela tem de ser boa e saudável para os dois envolvidos. Sobre isso, tenho insistido junto aos meus alunos: terapia não pode ajudar ao Outro e torna-lo doente! Essa percepção profunda tem sido uma das minhas bandeiras enquanto professor.

Em 2009, no Congresso Internacional de Shiatsu em Madrid, encantei-me com o ideograma “Odori” (dança) na versão Shodo de Kazuko Hagiwara. Arrematei a peça, então a venda, e desde então ela segue me inspirando no movimento de yin-yang.

Nessa mesma época, Sylvio Porto me mostrava, através de duras sessões de massagem e terapia reichiana, a arte da expressão da alma sem condicionamentos. Tais movimentos me permitiram uma sustentação para momentos pessoais muito difíceis.

Iniciava-se em minha vida um período de sofrimento, perdas na carne, reviravoltas na vida e nas relações. Mas também vieram novas descobertas, pessoas e possibilidades. Tudo muito intenso. Afinal, é na temperatura alta que se forja o aço e se fundem especiarias em novos sabores. Independente da dor e do prazer, lá estava minha mãe para seu eterno filho pródigo, com a sabedoria de seu silêncio acolhedor e cheio de arestas invisíveis, pantomímicas.

Por volta de 2010, minha “Fênix Interior”, minha identidade tal como eu havia construído, tão cheia de divisões, morrera para ressurgir com uma qualidade mais complexa.

Surgiu aí o encontro derradeiro da mímica-terapia-dança em mim, junto com a experiência um tanto inédita de integração-integridade psicoafetiva. No processo, aprendi mais sobre a ver, ouvir, expressar, e coloquei tudo na dança de minha terapia, a serviço das pessoas.

Não foi um processo rápido: Sete anos se passaram.

Em 2016, me fiz em silêncio, reduzi meus cursos e imergi em outra esfera de aprofundamento e maturidade. Iniciei a travessia de minha quadragésima década com a paz do reconcílio com meus referenciais masculinos e femininos. Mergulhei na pedagogia, e para ela, o terapeuta oferece o que sabe. Mas principalmente aprende para, quem sabe, deixar de existir – por tornar-se desnecessário. Odori mais uma vez me transportou, do butô para a mímica, da mímica ao butô, da somas destes para a terapia. Não há dança nem terapia que não seja relacional, e no movimento do silêncio operam-se transmutações das almas ali alinhadas. Expectador-Artista, Atendido-Terapeuta, expansões e recolhimentos encarnados a guardar um a semente do outro.

Seguirei recolhido em 2017 ou estarei pronto para uma nova expansão? Já não importa verdadeiramente. Importa-me o agora. Neste momento, a quietude me alcança,  e reencontro minha Mãe-Marcel_Marceau, após um dia de sessões em que danço, no chão e descalço, a dança da vida.

Posfácio

Um presente da minha mãe

Estamos em tempo de comemorar a possibilidade de existir da Sagrada Família, em cada lar. Através da imagem do nascimento, nossa cultura homenagem a chegada do novo, da esperança, e do ciclo de aprendizagem do casal através de seu abençoado filho.

Para mim, esse texto é sobre um filho que cresceu. E reconheceu. É um presente de Natal para mim mesmo e para minha mãe. E está estendido a vocês que me leem. Pequeno texto-memória-ensaio, está pleno de ternura em direção aos meus atendidos, tão vitais em minha caminhada. Através dele, saberão que, não fosse também por minha mãe, eu não poderia atende-los do jeito particular com que o faço. Muito obrigado a todos.

É a primeira vez que falo das influências dela no meu trabalho, aliás. Então o texto fica também como uma correção histórica. O sentimento de gratidão não costuma ser expressado em público para além dos prêambulos rituais dos livros… Mas quem sabe, essa homenagem poderá inspirar outros filhos a também agradecerem às suas mães? Tenho pessoalmente agradecido ela sempre, há anos. Porque não ia querer que aquela árvore generosa saísse desse mundo sem saber – mesmo que jamais me cobre.

Aqui, a gratidão se direciona a oportunidade que sua sensível alma me ofereceu lá atrás – e eu agarrei. Mas para as tantas outras coisas, que não caberia em texto ou livro nenhum, vale ser genérico: Obrigado por tudo mãe.

***

* Arnaldo V. Carvalho é terapeuta e trabalha na ilusória linha entre corpo-mente-energia.

(1). A consciência disso me fez ousar ao apresentar em 2007, no congresso internacional Fitness Brasil, um curso ensinando três técnicas “distintas”, utilizando a análise comparada para obter bons resultados.