“Em poesia a razão é acessório”
Nascido em Cuiabá em 19 de dezembro de 1916, Manoel de Barros é considerado um dos maiores poetas vivos do país. Recebeu os mais importantes prêmios literários brasileiros, entre eles dois Jabutis, dois Nestlé, um prêmio da ABL e ainda um da Biblioteca Nacional.
Posto aqui pequena seleta poética de sua obra. Para mim, ele é eloqüente a moda brasileira, brinda a natureza com um mix de autenticidade a Guimarães Rosa e simplicidade dos Haicais japoneses. Pitadas quintanescas e tio manoelinas… Desfrutem a vontade.
“O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares, organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora”.
ESSA FUSÃO COM A
natureza tirava minha
liberdade de pensar.
Eu queria que as
garças me sonhassem.
Eu queria que as
palavras me
gorjeassem. Então
comecei a fazer
desenhos verbais de
imagens. Me dei bem.
Perdoem-me os
leitores desta entrada
mas vou copiar de
mim quatro desenhos
verbais que fiz para
este livro. Acho-os
como os “impossíveis
verossímeis” do nosso
mestre Aristóteles.
Dou quatro exemplos:
1) É nos loucos que
grassam luarais; 2) Eu
queria crescer pra
passarinho; 3) Sapo é
um pedaço de chão
que pula; 4) Poesia é
a infância da língua.
Sei que os meus
desenhos verbais
nada significam.
Nada. Mas se o nada
desaparecer a poesia
acaba. Eu sei. Sobre o
nada eu tenho
profundidades.
Trecho da apresentação de Manoel de Barros para sua “Poesia completa”
EU QUERIA FAZER PARTE DAS ÁRVORES COMO OS
pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as
pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu não poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras
fazem.
Porque o homem não se transfigura senão
pelas palavras.
E isso era mesmo.
Poema de “Menino do mato”, de Manoel de Barros
NADAS
“Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades. Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu preceptor, esse gosto esquisito. (…) Ele fez um limpamento em meus receios. Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas… E se riu. Você não é de bugre? – ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas – Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os articuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de gramática.”
SABEDORIA
“Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca; b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer; c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos; d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote tem salvação; e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos; f) Como pegar na voz de um peixe; g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. Etc. Etc. Etc.”
POESIA
“No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito: Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando ao lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite. E um sapo engole as auroras.”
PRINCÍPIO
“No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a voz dos passarinhos.”
CONJECTURAS
“As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.”
“A gente é rascunho de pássaro. Não acabaram de fazer…”
ÁGUAS
“Escuto o meu rio: é uma cobra de água andando por dentro de meu olho.”
“Minha boca estava seca igual do que uma pedra em cima do rio.”
“Um grande rio de poesia atravessa-me, doce…”
“A hera veste meus princípios e meus óculos. Só sei por emanações por aderência por incrustações. O que sou de parede os caramujos sagram. A uma pedrada de mim é o limbo. Nos monturos do poema os urubus me farreiam. Estrela é que é meu penacho! Sou fuga para flauta e pedra doce. A poesia me desbrava. Com águas me alinhavo.”
“A água é madura. Com penas de garça. Na areia tem raiz de peixes e de árvores. Meu córrego é de sofrer pedras, mas quem beijar seu corpo é brisas…”
“No chão da água luava um pássaro por sobre espumas de haver estrelas. A água escorria por entre as pedras um chão sabendo a aroma de ninhos. (…) Árvores com o rosto arreiado de seus frutos ainda cheiravam a verão. Durante borboletas com abril esse córrego escorreu só pássaros…”
CONVERSA
“Você brincou de mim que uma borboleta no meu dedo tinha sol? Você ia pegar agora o que fugiu de meu rosto agora? Na beira da pedra aquele cardeal, você viu? Fez um lindo ninho escondido bem para a gente não ir apanhar seus filhotes, que bom. Ó meu cardeal, você não é um sujeito brocoió à toa! Você é um passarinho atravessado…”
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A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou – eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.
* * *
moda ave
O menino pegou um olhar de pássaro –
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava as coisas
por igual
como os pássaros enxergam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra.
E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar às pedras costumes de flor.
Podia dar ao canto formato de sol.
E, se quisesse caber em uma abelha, era
só abrir a palavra abelha e entrar dentro
dela.
Como se fosse infância da língua”.
BARROS, Manoel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004.