Por Arnaldo V. Carvalho
“Nasci e não me lembro dos fatos. Crescerei. O que serei? Carrego em mim o registro de uma loucura. A loucura de meu pai e de minha mãe. Ele a matou. eu ainda mamava. Pouco tempo antes ainda residi naquele ventre, hoje frio, despedaçado. Meu pai é um monstro. Minha mãe seduziu-se por um monstro, e agora sou filho dessa noite sinistra e má. E crescerei. Que será de mim?
Guardo comigo impressões não claras, não cognitivas, de ódio e morte. Que faço com isso? Como isso se manifestará em mim? Lutarei contra tais impressões? Farei delas uma parte de mim? Ou será que já são? Sim, tenho o DNA do meu pai, e da minha mãe. Aquilo tudo eram suas almas? Ou foram eles transformados, degenerados pela vida?
Eles são meus pais. Me deram a vida. Represento-os. Devo representa-los também na loucura? Tomarei ódio pela figura masculina impressa como cruel e assassina, ou a assumirei tal como a percebi? Quem sabe tomarei ódio de minha mãe e jamais consiga me relacionar. Aceitarei a verdade de meu homem-pai, e serei um machista-passional-psicopata a massacrar a frágil-putinha-ambiciosa? Tornar-me-ei avesso a própria vida, e assim buscarei alívio na auto-punição da castidade severa, da culpa e do isolamento? Serei uma eterna vítima? Formarei câncer e morrerei mais cedo? Fugirei para as drogas? Ou, quem sabe, decidirei ser especial, e tornarei-me acima de tudo isso? Terei chances de ver que não existem de fato monstros ou maus, mas cadeias constantes de equilíbrio e desequilíbrio?
As pessoas me rotularão. Me farão de coitadinho, me fragilizarão. Algumas, contudo, terão medo de mim. Adultos tirarão seus filhos da escola em que eu frequentar. Outros quem sabe conversarão com eles, dizendo que “precisam me ajudar”.
Crescerei. E afinal, a vida me dará chances de vencer meus registros? De ver acima deles? Talvez… só dependa de mim”.
Muita coisa me espanta num caso como o do goleiro Bruno. Me espanta o povo que se choca com algo que acontece DIARIAMENTE em doses equivalentes de loucura e crueldade, mas que, por acontecer a um famoso, desperta surpresa e sentimento. Como acordar tranquilo sabendo que nesse momento crianças estão sendo estupradas, mulheres estão sendo mortas? Não, não faz diferença. Faz porque é um jogador de um clube famoso.E a guerra continua aí, invisível, insensível, diante de todos, humano contra humano, vida contra vida. É uma tecla batida, que sempre toco e sempre tocarei, enquanto o povo continuar se espantando com o que acontece e vira notícia, e ignorando o que está diante de seus olhos.
Me choca porque o episódio, muito mais do que gerar reação das autoridades e reflexão na sociedade (não necessariamente nessa ordem), é muito mais efetiva para a venda do filme pornô de Eliza Samúdio. É mórbido. É grotesco. A mulher deixou um filho bebê, foi dilacerada em pedaços, e o povo ainda quer ver o filme pornô dela. Senti vontade de vomitar quando li a manchete no jornal sensacionalista, ao passar por uma banca de jornal. O caso revela uma face do brasileiro que eu não conhecia, ou pelo menos recusava-me a admitir: necrófilos (mais do que nunca agora me faz sentido o desejo insandecido de muitos brasileiros a varrer a Internet em busca de pedaços dos corpos dos Mamonas Assassinas). Num mundo que comemora vampiros como heróis do cinema, TV, livros e joguinhos, faz todo o sentido. Devo ser mesmo um alien.
Mas o que mais me choca, é o que não se vê, não se fala, não se comenta. Incrível como ninguém parece estar muito preocupado com o que acontece com o bebê. “Será criado pelo avô”; não basta! A esse menino, nada bastará, pois é um condenado. Ao condenarmos seu pai e sua mãe (“pecadora beatificada, purificada pela morte”), como livrar o bebê de seu “karma”? Ele deve crescer com a verdade, ou fingirá sua família que a mãe ou mesmo os pais morreram num acidente de carro? deverá ser hiperprotegido pois afinal é não tem culpa de nada, ou deve ser tratado como uma criança qualquer? Ou mesmo ser linha dura para que ele aprenda a ter mais respeito pelas pessoas e não se torne arrogante como o pai? Deverá ele crescer com senso de julgamento em relação aos pais? Tal senso de julgamento deverá vir de uma fonte externa, ou ele deverá criar o seu próprio? Ou será o menino capaz de livrar-se dos julgamentos, e simplesmente agradecer por ter nascido, desvinculando-se de tudo o que é pura pobreza espiritual?
Enquanto julgamos e condenamos seus pais, estamos condenando esse menino. Estamos atirando pedra numa loucura que isolamos como se isola um câncer e se diz: “isso não é meu”! O pior é que é. E se não se compreende isso, não se muda a própria natureza. Se a sociedade não muda, poderá estirpar milhares de Brunos de si… O corpo-social fará metástases. O câncer seguirá rondando. A responsabilidade é de todos. Ainda ontem, Michel Odent disse em brilhante roda de conversas: “fomos criados com o discurso de que devemos amar o próximo. Parece que só falar isso para os filhos não deu certo”. Não deu mesmo. O mundo continua envolvido com uma cultura de guerra, morte, visão curta e insustentabilidade.
Esse menino meus amigos, hoje é filho da Sociedade Brasileira. É a própria sociedade. É o futuro de cada um de nós, de cada filho nosso.
Preocupado eu fico com o menino, e o que fará com tudo isso na vida adulta. E nós, o que faremos? Torço que a Vida vença a anti-vida, dentro dele e em nossa Coletividade.
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