Quando mestres livros e memórias se vão… E é preciso encarar tudo isso
Por Arnaldo V. Carvalho*
Passou por esta vida meu querido mestre Douglas Carrara. Encerrando-se a passagem do sol pelo signo de Leão em fins de agosto, despediu-se após 74 anos dedicados à Vida, em seu sentido mais verdadeiro, intenso, puro.
Mais do que qualquer outro professor que tenha tido, a naturopatia era Douglas: o antropólogo, botânico, fitoterapeuta, tinha na visão científica sua forma de ir ao encontro e defender a natureza e os povos que nela vivem mais integrados do que nós. Sertanejos, indígenas, seus fazeres e saberes, e o meio que os cercava foram a principal bandeira deste homem que se mostrou incansável por tantas e tantas décadas.
Douglas também foi responsável pelo Naturo-data, o banco de dados sobre plantas medicinais mais completo que já vi. Escrito inteiramente em uma “língua morta” de computador, Douglas preparava-se para finalmente ver seu projeto, executado de forma rigorosa, ganhar asas sendo convertido para Java(1) através de uma parceria. Torço que sua esposa Jania e seus filhos levem o projeto adiante, pois é um bem da humanidade, e creio, seria de profundo desejo dele.
Primeiras memórias
Lembro-me de meu primeiro contato com o Professor Douglas. O Centro de Estudos de Naturopatia Aplicada (CENA) aguardava por um palestrante, que falaria aos novos alunos, numa espécie de cerimônia para marcar o início da formação. Eu era um dos alunos que aguardava e, no atraso, um dos presentes começou a conversar conosco, demonstrando grande conhecimento acerca dos saberes naturopáticos. Lá estava aquele senhor magro, barbado, óculos e fala pausada, a costurar tramas de pensamentos cuja profundidade se fazia alcançar pela eloquência. Quando a coordenadora do curso desistiu de aguardar o palestrante, pediu ao Douglas que falasse a nós. Ele já falava, e nós já estávamos todos encantados. Lembro de olhar para os olhos de algumas colegas, e todos – como o meu – brilhavam.
A fitoterapia era a área mais forte na formação do CENA. Dedicada a ela, uma constelação de professores atuou diretamente conosco por um ano e meio somente nos desdobramentos deste assunto: o biólogo e raizeiro Ary Moraes, o fitoterapeuta Fernando Fratane, o médico suíço Dario Laüppi e o Professor Douglas. Quando as disciplinas de botânica e fitoterapia começaram, foi Douglas quem nos introduziu a esse conhecimento. Estudamos a taxonomia vegetal com alguém que falava dela como se referisse a parentes bem conhecidos. O conhecimento fluía naturalmente dele para nós, e de suas lições, nunca esqueci.
A consciência das políticas nacionais e internacionais de proteção à fauna, à flora e aos povos da floresta, a biopirataria, o indigenismo, os bancos de sementes e DNA vegetal, bem como os últimos estudos nestas e outras áreas, eram assuntos que permeavam os conteúdos de aula. Assim, descobríamos como identificar labiadas ou asteráceas, que vegetais produziam alcalóides, mucilagens, terpenóides, etc., onde cada espécie crescia, como se aclimatava, que usos tradicionais se observava em diferentes grupos sociais no Brasil e mundo, mas aprendíamos também sobre um todo na interação humanidade-natureza. Após a formatura de minha turma, o CENA fechou. Em uma cascata que levou embora uma série de cursos similares, na mesma época.
A velha naturopatia, alternativa mais a margem das profissões de saúde que qualquer outra, por se aproximar “perigosamente” das falas e saberes de raizeiros, rezadores, parteiras e indígenas, daria lugar à renovada Naturologia, que fugia de competir com a alopatia e se firmava pelas evidências científicas produzidas no loco acadêmico.
Praxis naturopática
Mas minha atividade continuou, e meus contatos e aprendizados com Professor Douglas persistiram… até hoje. Douglas me narrou muitos casos de tratamento, verdadeiros mistérios por ele desvendados após exaustivas pesquisas. E me enveredou por esse espírito detetive, que habitua meu caminho profissional e me torna bastante dedicado em compreender um caso clínico com profundidade bem além dos protocolos. Esse espírito investigativo nos aproximava muito e rendeu muitos encontros entusiasmados, onde um inspirava o outro em novas elaborações e conjecturas no resolver de casos de saúde.
No tempo do Portal Verde(2) convidei-o mais de uma vez para dar palestras, cursos, participar de debates. Juntos, estivemos em congressos, e seguimos trocando ideias confabulando oportunidades de levar a público o conhecimento sobre a relação entre o ser humano e as coisas da natureza. E assim ele seguiu sendo meu mestre informal, de quem aprendi e por quem gostaria de ter feito muito mais do que fiz.
A partida do meu professor decreta meu próprio fim na atividade profissional que abracei por bastante tempo: a naturopatia. É um momento difícil, mas são horas.
O fim da minha naturopatia
Até aqui, guardei meu trabalho de curso sobre a Salvia officinalis, corrigido por ele. Chegou a hora de me despedir. Assim como este simplório trabalhinho, o restante de minha biblioteca sobre plantas medicinais, alimentação natural, geoterapia e outros temas relevantes da naturopatia, que levei vinte anos compondo com autores selecionados e algumas preciosidades, vão embora para outros ares, outras mentes – e que possam ser tão úteis, lidos e luminosos como foram para mim.
Com os livros, vai-se embora mais um naturopata, atrás de seu mestre. Um lado inteiro de mim.
Talvez possa dizer que me despedi mais aos poucos do que ele. Já não sou um verdadeiro naturopata. Meu contato com a natureza tem se tornado cada vez mais circunscrito. Tenho feito pouco pela causa natural, já não divulgo minha expertise profissional e apenas aqueles que me conhecem há mais tempo ainda me procuram para orientação profissional nesses termos. A medida que reduzi minha experiência ao contexto da somatopsíquica(3), foram ficando para trás meus anos de estudos sobre ervas medicinais, alimentação, e técnicas diversas oriundas da natureza, aprendidas sobretudo na fusão Carrariana da etnomedicina com a ciência.
Agora, me restará buscar fundo a naturopatia e Prof. Douglas em recônditos de mim, para não permitir a insipidez da mente humana dissociada do corpo natural, do indivíduo e de Gaia.
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* Arnaldo V. Carvalho: pai, terapeuta, gente. Ex-naturopata.
Notas
(1) Java é uma linguagem de computador, amplamente utilizada na atualidade, e que pode permitir ao Projeto Naturo-data alcançar finalmente a Internet.
(2) Portal Verde é um projeto de fomento à saúde e a qualidade de vida iniciado em 1999 por mim e dois parceiros (Luiz Otávio Miranda e Altamiro V. Carvalho). Entre 2000 e 2008 funcionou como centro de terapias em Niterói. Desde seu fechamento, permaneceu na Internet como um site divulgador de notícias relacionadas à uma vida naturalmente mais saudável.
(3) Somatopsíquica é como podemos chamar a compreensão de como os processos corporais (soma) interferem na mente (psiquê). É o inverso da Psicossomática. Atualmente basicamente meu trabalho consiste em observar como a mente transfere informações para o corpo e como este lhe retorna. O trabalho terapêutico passa essencialmente pela compreensão desse endo-relacionamento, e de como isso se comunica com o meio externo, em especial nos interrelacionamentos.
Mais sobre Douglas Carrara:
http://www.bchicomendes.com/cesamep/poscurri.htm
http://www.recantodasletras.com.br/autores/douglascarrara
http://www.constelar.com.br/constelar/121_julho08/mapatestedouglas_mapa2.php