Era um casal bonito aquele. Agora é mais.
O rapaz viajou. Foi uma longa viagem, e a primeira vez – desde a adolescência, que ficara para trás vinte anos antes – que ele havia se afastado dela.
No início, sentiu saudade e solidão. A solidão cresceu. Ele resolveu mexer o corpo para passar o tempo e quem sabe, sentir-se melhor. Emagreceu. Encontrou uma energia que não conhecia. Sentiu-se após alguns meses, pela primeira vez, bem com ele – independente dela. Adaptou-se a poder ser apenas ele. A solidão continuava.
Ele ainda pensava nela todos os dias quando foi cortejado. Meses depois, por um instante não pensou. E viveu aquele romance de exaltação ao próprio eu. Foi curto, já era quase hora de voltar.
Ela sofria de saudades. Sabia que ele também tinha muitas. Era verdade. Mas ao contrário dela, que seguia-se sentindo com um pedaço a menos da própria carne, ele não, se conjuntou em outra conjuntura. Ao menos parcialmente.
No dia do voo, ele tremia de excitação. E culpa. E medo.
O retorno foi a reconjunção do casal bonito, que tanto se amava, que tanto ardia um pelo outro, que tanto era Um.
Mas com um algo qualquer de diferente, inexplicável.
Ele não aguentou. Seu coração decidiu deixar pistas. Ela encontrou. A verdade veio a tona. Ele chorou, chorou, chorou, por ter sido traído por seu próprio ego. Chorou porque nunca quis deixar de ser Um com ela. Nunca, a não ser naquele curto momento, em que o desejo de se firmar como ele mesmo tenha vencido.
E ela chorou, chorou, chorou. Principalmente por raiva. Muita raiva. Raiva de sua própria escolha de ter seguido com um pedaço a menos por todo esse tempo. Raiva por não ter feito nada por si. E obviamente, pela atitude dele. Infiel.
Mas havia verdade na dor e no choro dele, e ela sabia.
E ele curvou-se ante dela, cabisbaixou-se a parti de seu erro, e submeteu-se ao purgatório.
Por que? Chorava ela raivosa, toda noite, por noites e noites?
Por que? Ela gritava irritada, com os dentes amostra.
Você não podia… Ela trazia e meio a uma conversa qualquer sobre qualquer outro assunto.
Foi assim por semanas; Semanas não, meses.
Mas ela sabia do arrependimento, podia senti-lo; E por todo aquele tempo, ele não esteve em nenhum lugar errado, nenhum lugar que não fosse o de pedir perdão, reafirmar o amor, e desejar ali estar.
Ela perguntou tudo o que queria perguntar – e foi bastante doído, mas ela queria saber. E ele contou tudo o que ela pediu. As vezes perguntava a ela se aquilo era realmente tão importante. As vezes era. Uma tortura. Mas dava o que pensar.
A mente dela, a existência dela, não saía mais daquele lugar.
Até que houve um limite. Não foi imposto. Foi sugerido.
– Se não conseguir parar, não conseguiremos.
Foi ele quem disse. E ela sabia que era verdade. Ela já sabia tudo. Inclusive que não era possível apagar, menos ainda voltar no tempo. Ela sabia e o amava e desejava ardentemente.
Doía nos dois. E era inviável seguir sendo apenas memória e dor. Aquele casal de antes havia morrido.
O Amor, semente eterna das transformações que perduram e fazem bem, não!
Inteligente, ela começou a observar que precisava ser Um sem ele, que ele havia voltado uma pessoa melhor em vários sentidos e isso era inspirador.
Ele sabia que não conseguiria mas não ser o Um que era com ela, sem ser um Um ele mesmo.
E ambos agora sabiam que queriam ser Um juntos mas serem Um eles mesmos.
Não podiam esquecer. Nem era para. Mas era preciso limites, era preciso avançar para além da marca que ficou. Era preciso olhar para a cicatriz pensando no tanto que aquilo representava – não só na dor do momento, mas no processo de cura da ferida e o quanto o Todo se tornou mais forte. E o quanto a experiência de ser humano se fazia ali. Muitas lições numa mesma situação.
Foi desse amor que nasceu a cura, o perdão, um casal novo, quente, mais belo e jovial que o de antes.
Foi desse amor que nasceu um fruto que hoje dá muitas alegrias a esse casal. Quem diria, antes, quando eram Um sem serem para si mesmos, perseguiram tanto esse filho e nada. Agora sim, inteiros os dois, vingou aquele que representa um pouco do todo de cada um.
E eles são felizes para quase sempre e assim seguirão.
*-*-*
Essa é uma história verídica que acompanhei em consultório. Um processo muito doído e difícil. E que nos ensina sobre Amor, mas sobretudo, sobre a paciência necessária de quem erra ou representa o erro, e a necessidade de limites em relação a memória.
Eu a trouxe nesse momento, porque é patente que a sociedade entenda a importância da memória. De não se passar borracha nos erros – não devem ser esquecidos. Mas que sim, ao mesmo tempo deve haver um limite sobre isso.
É um tema em Roma e outras cidades históricas na Itália e outros países, o quanto se deve explorar o território em termos arqueológicos. Eles sabem que debaixo das vilas, cidades, debaixo de praticamente toda as casa da Itália, a chance de se encontrarem vestígios importantes da antiguidade são enormes. Mas as pessoas que lá vivem também precisam viver! Precisam ocupar esses espaços, olhar para frente.
Então, trazendo para a realidade brasileira, não, não podemos esquecer a escravidão, a genocídio indígena, a ditadura, as explorações diversas, momentos de sangue e dor por todo o país. É fato. É passado. Deve ter marcos e serem tratados com seriedade e respeito. E ocupar aquele momento do dia e da vida em que devemos nos perguntar: para onde queremos ir?
A dor do negro, dos indígenas, das mulheres, de todos os oprimidos precisa ser ouvida. Será ouvida muitas vezes, à exaustão, por gerações. É NECESSÁRIO! Não se desfaz a dor na psique coletiva em uma vida gente. São várias. O tempo é de aprender a escutar, de baixar a cabeça (os “Eles” – as pessoas que tiveram acesso a uma situação sóciocultural privilegiada – majoritariamente brancas), e humildemente de pedirem perdão (não com comiseração mas agindo pela construção de uma nova história), e afirmarem o Amor ou sair do caminho e deixar que Elas (as pessoas que já nasceram desprivilegiadas, em um Brasil de tantos erros e distorções sociais históricas) encontrem seus espaços (isso é respeito, e é o mínimo).
Minha escolha é pelo Amor. Da ação pelo fim das diferenças valorativas enntre as pessoas.
A todos os meus amigos cujo lugar de fala é repleto dessas memórias de repressão, machismo, misoginia, eu digo: sejam como essa “Ela”! Não deixem “Ele” esquecer! Gritem, revoltem-se, e não tolerem nada além de paciência, voz baixa e arrependimento sincero. Fiquem atentas a sinceridade de “Ele”.
Com as gerações sendo continuamente ouvidas, vai passar. Em algum momento, a dor vai tomar outra forma, uma cicatriz dará lugar ao buraco. Poderá a realidade irreparável da cicatriz social ser ponto de olhar e lembrar, com dor mas também para a importância da reparação no crescimento da sociedade. Escolheremos.
Será o tempo de se pensar no fim das armas, das guerras, dos cantos tristes. Será o fim dos cativeiros emocionais, porque cada um poderá ser Um e poderá ser o Um-Todo ao mesmo tempo.
Mas isso é uma outra história, uma história ainda distante de nosso tempo.
***
Arnaldo V. Carvalho e filho de um pai imigrante português (possivelmente com raízes árabes cristãs novas), com uma mãe neta de portugueses, indígenas e sabe-se lá quantas etnias atrás disso. Classe média, vida simples. Educador, pai, terapeuta, cidadão brasileiro.
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