Unboxing: um ensaio

UNBOXING

Arnaldo V. Carvalho

O interfone toca, e Leonardo já sabe o que é. Aliás, ele já esperava há alguns dias. Imediatamente, desce o elevador, e pega a encomenda na portaria. Sobe de volta fingindo calma, quase podendo sentir o aroma do que o aguarda dentro da embalagem. Os dias que separaram o click final da compra daquele momento foram de pura expectativa.

Não, ele não abriria imediatamente. Precisava terminar seu trabalho. Precisava ter o tempo necessário a viver a experiência sem pressa, integralmente. Afinal, não foi para um rasgar de papeis e plásticos, tal qual um faminto devora qualquer coisa, que dedicou horas lendo resenhas, assistiu vídeos, trocou informações… Ele sabia da qualidade da marca, sabia do cuidado de quem criou esse produto. Ele já os admirava, de outras experiências. 

Esperou a noite, esperou as crianças serem pelas mãozinhas levadas por Morfeu ao doce sonhar. Esperou estar só ele e sua caixa. Não era uma encomenda qualquer.

  Um vinho.

   Um livro.

        Um CD.

.

Não. Era um sonho. Uma promessa. Um delírio.

Pegou seu estilete e cuidadosamente, removeu as fitas que sustentavam o envólucro em torno do objeto. Como um cirurgião hábil, despiu a caixa do papel pardo que o oprimia. As cores da caixa saltaram. A ilustração de seu artista preferido. O autor da obra assinalado no topo. Um gênio. A marca de confiança, ali, abaixo. A certeza do que era agora era o regozijo da presença. Mais uma vez o estilete, agora ainda mais cuidadoso: um fio de plástico foi criado em volta da tampa, de modo que ela pode ser aberta mantendo a segunda pele intacta, pronta para seguir protegendo, o interior, talvez por bom tempo. O aroma era inconfundível, mistura de madeira, plástico e papel novos. Aparentemente, tudo em ordem. A textura dos objetos foi sentida uma a uma: cubos de madeira; tabuleiro em material cartonado, dobrado em quatro partes; dados material translúcido; fichas, ainda unidas na matriz de corte, pedindo para serem destacadas. Ainda não havia decidido fazer isso naquele instante. Miniaturas sofisticadas em um cinzento que – quem sabe! – um dia tomará coragem e pintará. Lembrou dos amigos, imaginou o personagem que cada um gostaria de utilizar. Pegou o manual, tão belo! Sem comparações com o PDF prévio que havia lido. Tê-lo em mãos. Passar da introdução diretamente aos créditos, sem deixar de admirar as ilustrações. Sim, ele iria destacar as fichas. Ao menos parte! Sempre há risco de uma ficha se desprender “mal” e isso lhe causar algum dano. O estilete. Assim. Pouco a pouco, elas se dispersavam sobre a mesa, junto dos componentes e da insígnia de primeiro jogador – que aliás tinha igualmente uma arte especial, tão temática! Naquele dia, a experiência já estava completa. Não. Precisava ver montado. Um setup inicial, ou ao menos uma prévia desse. Abriu o tabuleiro no meio da mesa. Majestoso. Quantos detalhes. Um trilho de pontos de vitória. Parece que essas áreas devem receber os personagens. Colocou, quase aleatoriamente, alguns aqui e ali. Experimentou os dados. Sim, foi uma boa compra. Pediu do fundo da alma para que o domingo não demorasse a chegar, e seguiu feliz guardando tudo de volta na caixa, com amor de criança e cuidado de adulto. Deixou a caixa adormecer na mesa, sem coragem de colocá-la na estante naquela noite. E foi se recolher.

Escrito por Arnaldo V. Carvalho

O interfone toca, e Leonardo já sabe o que é. Aliás, ele já esperava há alguns dias. Imediatamente, desce o elevador, e pega a encomenda na portaria. Sobe de volta fingindo calma, quase podendo sentir o aroma do que o aguarda dentro da embalagem. Os dias que separaram o click final da compra daquele momento foram de pura expectativa.

Não, ele não abriria imediatamente. Precisava terminar seu trabalho. Precisava ter o tempo necessário a viver a experiência sem pressa, integralmente. Afinal, não foi para um rasgar de papeis e plásticos, tal qual um faminto devora qualquer coisa, que dedicou horas lendo resenhas, assistiu vídeos, trocou informações… Ele sabia da qualidade da marca, sabia do cuidado de quem criou esse produto. Ele já os admirava, de outras experiências. 

Esperou a noite, esperou as crianças serem pelas mãozinhas levadas por Morfeu ao doce sonhar. Esperou estar só ele e sua caixa. Não era uma encomenda qualquer.

  Um vinho.

   Um livro.

        Um CD.

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Não. Era um sonho. Uma promessa. Um delírio.

Pegou seu estilete e cuidadosamente, removeu as fitas que sustentavam o envólucro em torno do objeto. Como um cirurgião hábil, despiu a caixa do papel pardo que o oprimia. As cores da caixa saltaram. A ilustração de seu artista preferido. O autor da obra assinalado no topo. Um gênio. A marca de confiança, ali, abaixo. A certeza do que era agora era o regozijo da presença. Mais uma vez o estilete, agora ainda mais cuidadoso: um fio de plástico foi criado em volta da tampa, de modo que ela pode ser aberta mantendo a segunda pele intacta, pronta para seguir protegendo, o interior, talvez por bom tempo. O aroma era inconfundível, mistura de madeira, plástico e papel novos. Aparentemente, tudo em ordem. A textura dos objetos foi sentida uma a uma: cubos de madeira; tabuleiro em material cartonado, dobrado em quatro partes; dados material translúcido; fichas, ainda unidas na matriz de corte, pedindo para serem destacadas. Ainda não havia decidido fazer isso naquele instante. Miniaturas sofisticadas em um cinzento que – quem sabe! – um dia tomará coragem e pintará. Lembrou dos amigos, imaginou o personagem que cada um gostaria de utilizar. Pegou o manual, tão belo! Sem comparações com o PDF prévio que havia lido. Tê-lo em mãos. Passar da introdução diretamente aos créditos, sem deixar de admirar as ilustrações. Sim, ele iria destacar as fichas. Ao menos parte! Sempre há risco de uma ficha se desprender “mal” e isso lhe causar algum dano. O estilete. Assim. Pouco a pouco, elas se dispersavam sobre a mesa, junto dos componentes e da insígnia de primeiro jogador – que aliás tinha igualmente uma arte especial, tão temática! Naquele dia, a experiência já estava completa. Não. Precisava ver montado. Um setup inicial, ou ao menos uma prévia desse. Abriu o tabuleiro no meio da mesa. Majestoso. Quantos detalhes. Um trilho de pontos de vitória. Parece que essas áreas devem receber os personagens. Colocou, quase aleatoriamente, alguns aqui e ali. Experimentou os dados. Sim, foi uma boa compra. Pediu do fundo da alma para que o domingo não demorasse a chegar, e seguiu feliz guardando tudo de volta na caixa, com amor de criança e cuidado de adulto. Deixou a caixa adormecer na mesa, sem coragem de colocá-la na estante naquela noite. E foi se recolher.

*Arnaldo V. Carvalho, pedagogo e terapeuta, é um estudioso da aprendizagem e das subjetividades humanas em torno do lúdico e dos jogos de tabuleiro.

Filho de um Monstro

Por Arnaldo V. Carvalho

https://arnaldovcarvalho.wordpress.com/wp-content/uploads/2010/07/876692.jpg?w=300

“Nasci e não me lembro dos fatos. Crescerei. O que serei? Carrego em mim o registro de uma loucura. A loucura de meu pai e de minha mãe. Ele a matou. eu ainda mamava. Pouco tempo antes ainda residi naquele ventre, hoje frio, despedaçado. Meu pai é um monstro. Minha mãe seduziu-se por um monstro, e agora sou filho dessa noite sinistra e má. E crescerei. Que será de mim?

Guardo comigo impressões não claras, não cognitivas, de ódio e morte. Que faço com isso? Como isso se manifestará em mim? Lutarei contra tais impressões? Farei delas uma parte de mim? Ou será que já são? Sim, tenho o DNA do meu pai, e da minha mãe. Aquilo tudo eram suas almas? Ou foram eles transformados, degenerados pela vida?

Eles são meus pais. Me deram a vida. Represento-os. Devo representa-los também na loucura? Tomarei ódio pela figura masculina impressa como cruel e assassina, ou a assumirei tal como a percebi? Quem sabe tomarei ódio de minha mãe e jamais consiga me relacionar. Aceitarei a verdade de meu homem-pai, e serei um machista-passional-psicopata a massacrar a frágil-putinha-ambiciosa? Tornar-me-ei avesso a própria vida, e assim buscarei alívio na auto-punição da castidade severa, da culpa e do isolamento? Serei uma eterna vítima? Formarei câncer e morrerei mais cedo? Fugirei para as drogas? Ou,  quem sabe, decidirei ser especial, e tornarei-me acima de tudo isso? Terei chances de ver que não existem de fato monstros ou maus, mas cadeias constantes de equilíbrio e desequilíbrio?

As pessoas me rotularão. Me farão de coitadinho, me fragilizarão. Algumas, contudo, terão medo de mim. Adultos tirarão seus filhos da escola em que eu frequentar. Outros quem sabe conversarão com eles, dizendo que “precisam me ajudar”.

Crescerei. E afinal, a vida me dará chances de vencer meus registros? De ver acima deles? Talvez… só dependa de mim”.

Muita coisa me espanta num caso como o do goleiro Bruno. Me espanta o povo que se choca com algo que acontece DIARIAMENTE em doses equivalentes de loucura e crueldade, mas que, por acontecer a um famoso, desperta surpresa e sentimento. Como acordar tranquilo sabendo que nesse momento crianças estão sendo estupradas, mulheres estão sendo mortas? Não, não faz diferença. Faz porque é um jogador de um clube famoso.E a guerra continua aí, invisível, insensível, diante de todos, humano contra humano, vida contra vida. É uma tecla batida, que sempre toco e sempre tocarei, enquanto o povo continuar se espantando com o que acontece e vira notícia, e ignorando o que está diante de seus olhos.

Me choca porque o episódio, muito mais do que gerar reação das autoridades e reflexão na sociedade (não necessariamente nessa ordem), é muito mais efetiva para a venda do filme pornô de Eliza Samúdio. É mórbido. É grotesco. A mulher deixou um filho bebê, foi dilacerada em pedaços, e o povo ainda quer ver o filme pornô dela. Senti vontade de vomitar quando li a manchete no jornal sensacionalista, ao passar por uma banca de jornal. O caso revela uma face do brasileiro que eu não conhecia, ou pelo menos recusava-me a admitir: necrófilos (mais do que nunca agora me faz sentido o desejo insandecido de muitos brasileiros a varrer a Internet em busca de pedaços dos corpos dos Mamonas Assassinas). Num mundo que comemora vampiros como heróis do cinema, TV, livros e joguinhos, faz todo o sentido. Devo ser mesmo um alien.

Mas o que mais me choca, é o que não se vê, não se fala, não se comenta. Incrível como ninguém parece estar muito preocupado com o que acontece com o bebê. “Será criado pelo avô”; não basta! A esse menino, nada bastará, pois é um condenado. Ao condenarmos seu pai e sua mãe (“pecadora beatificada, purificada pela morte”), como livrar o bebê de seu “karma”? Ele deve crescer com a verdade, ou fingirá sua família que a mãe ou mesmo os pais morreram num acidente de carro? deverá ser hiperprotegido pois afinal é não tem culpa de nada, ou deve ser tratado como uma criança qualquer? Ou mesmo ser linha dura para que ele aprenda a ter mais respeito pelas pessoas e não se torne arrogante como o pai? Deverá ele crescer com senso de julgamento em relação aos pais? Tal senso de julgamento deverá vir de uma fonte externa, ou ele deverá criar o seu próprio? Ou será o menino capaz de livrar-se dos julgamentos, e simplesmente agradecer por ter nascido, desvinculando-se de tudo o que é pura pobreza espiritual?

Enquanto julgamos e condenamos seus pais, estamos condenando esse menino. Estamos atirando pedra numa loucura que isolamos como se isola um câncer e se diz: “isso não é meu”! O pior é que é. E se não se compreende isso, não se muda a própria natureza. Se a sociedade não muda, poderá estirpar milhares de Brunos de si… O corpo-social fará metástases. O câncer seguirá rondando. A responsabilidade é de todos. Ainda ontem, Michel Odent disse em brilhante roda de conversas: “fomos criados com o discurso de que devemos amar o próximo. Parece que só falar isso para os filhos não deu certo”. Não deu mesmo. O mundo continua envolvido com uma cultura de guerra, morte, visão curta e insustentabilidade.

Esse menino meus amigos, hoje é filho da Sociedade Brasileira. É a própria sociedade. É o futuro de cada um de  nós, de cada filho nosso.

Preocupado eu fico com o menino, e o que fará com tudo isso na vida adulta. E nós, o que faremos? Torço que a Vida vença a anti-vida, dentro dele e em nossa Coletividade.

*   *   *

Desconhecido

DESCONHECIDO

Por Arnaldo V. Carvalho

Algumas pessoas pensam que me conhecem.

Me julgam, me avaliam, baseados no que chega de mim a elas.

Por um pequeno conjunto de atos dentre meus tantos atos totais, avaliam-me por esses atos como quem avalia uma coreografia inteira por uma única pose.

Parecem-se com os cientistas que tentam julgar a natureza das estrelas por meio de pequenos traços dstorcidos de luz. Luz que chega aos telescópios terráqueos bilhões de anos luz depois… Será possível? Aqueles fachos traduzem uma estrela inteira? Se ao menos aquele facho chegasse completo, fidedigno, sem influências do caminho que trilharam… Será possível traduzir o macro integral em sua real fidelidade pelo micro defeituoso? Que seria do DNA caso a molecula que armazena tudo sobre a biologia de um ser esteja incompleta?

Algumas pessoas pensam que me conhecem

Avaliam-me por meus atos ou por atos cometidos num certo espaço de tempo em que houve convivência.

Mas a convivência, mesmo que fosse de 24H, não seria suficiente. Ninguém pode avaliar o que se passa dentro de mim. Ninguém entra nos meus sonhos. Ninguém me avalia quando estou só, ou quando me sinto só.

Não espere de mim ser o mesmo sempre. Não esperem de mim ser o mesmo, sempre.

É um ledo engano.

Algumas pessoas pensam que me conhecem.

Criam a ilusão de interpretar minha alma por uma ou outra expressão.

Não sou o que expresso. Minha expressão é modulada por um agente semi-inteligente, criação minha, mas não eu. É meu caráter, fruto dos embates de minha essência com minha educação e experiências, meus traumas e couraças. Minha expressão se modifica pela sintonia simbiótica que faço para com a vida tal como ela se apresenta num dado momento, com suas pessoas, estímulos, ambiente. A expressão é tão diferente de mim quanto essas letras com que escrevo são diferentes da minha fala. Minha fala é revestida da música do meu idioma na versão da minha voz, esta envolvida pelo que estou sentindo, e dos gestos que meu corpo faz, e do meu olhar, e do meu cheiro. Como você me leu? Pareço raivoso, recalcado, sábio e sereno, realista, romântico ou pessimista? É a sua voz que vai dar canto a essas letras, cuidado.

Algumas pessoas pensam que me conhecem.

Ledo engano.

Certa vez, postulei que o corpo é expressão da alma. Não é. É no máximo poético. O suficiente para que pessoas com ideias românticas sobre a vida abracem a idéia. Grandes psiquiatras e psicoterapeutas de abordagem corporal pensam muitas vezes pensam assim. Claro que deveria se assim. Claro que a alma clama por expressar-se no corpo ,e o corpo regozija-se de expressar a alma em detrimento do caráter. Deveria ser assim em indivíduos saudáveis. Mas não o somos. Resta-nos expressar não o que somos no íntimo, mas talvez aquilo que conseguimos ser (expressar).

Algumas pessoas pensam que me conhecem.

Dentro de cada um, pode ser que haja um algo que me conheça. Esse algo, contudo, está além das palavras. Ele segue sentindo a estranha energia de ligação que está além do tempo, do espaço, da cultura e dos atos, sejam quais forem.

Para me conhecer, é preciso ir além do que fiz ou faço. É preciso estar despido da própria capa, para me enxergar além da minha.

A coragem de seguir me olhando, independente do caminho que escolhi, se o que fiz foi bom ou ruim seja para mim mesmo, seja lá para quem for é algo que equivale a Arte de Viver. É sagrado, atributo da rara incondicionalidade que habita os homens e abunda nas utopias celestes.

Por isso, poucas são as esperanças de que alguém me conheça de fato, além dos bebês, animais e por vezes os velhos caducos, que já não defendem tanto o comportamento social aceito, nem defendem a si próprios, já saíram do mundo, já não estão nem aí… Não têm mais força, saco, e interiormente provavelmente entenderam que passaram uma vida de coisa não vivida por conta de regras, apegos e morais tolas.

Algumas pessoas pensam que me conhecem.

Não, também não me conheço. Ao menos sigo a tentar. Sigo me apresentando. E faço isso com paciência e carinho. Não me conheço por completo, mas me permiti finalmente a incondicionalidade sobre mim mesmo. Não o tempo todo; às vezes recuo, encontro sombras… A mesquinhez é um lado sombrio que por vezes, me acua. Mas já não dominam; As luzes chegam a cada dia, nesse processo belo, existencial e vital de sempre poder ser mais saudável, amoroso, maduro.

Algumas pessoas pensam que me conhecem.

Arrogantes. Permaneço desconhecido.

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