Dia de chamamento.

Arnaldo V. Carvalho

Esse dia é um chamamento. É só um chamamento. Um chamamento aos irmãos de África, ao que há de África em você. Você sabe. És humano. Todos viemos de lá.

Mas você também sabe. Diferente de nossos mais antigos ancestrais nômades, desbravadores do globo, nossos irmãos de África viveram espalhamento forçado nos últimos 600 anos. Por todos os continentes, homens, mulheres e crianças, enviados em tumbeiros fétidos. Escravizados.

Nenhum território recebeu tantos como o nosso Brasil. 4,8 milhões, quase a metade do total de negros que vieram às Américas. Você sabe, nossos irmãos foram humilhados, torturados, tratados como bicho nenhum jamais fora tratado por seus semelhantes. Mas você sabe? Você consegue admitir?

Eles continuam sendo.

De muitos territórios da África, seguem emigrando, forçados pela fome, pelas guerras, pela miséria. Migram da África para todo lado. Por aqui, migram também: dos miseráveis interiores de um Brasil afroindígena para suas bordas mesquinhamente mais ricas.

A africanidade, porém, nunca deixou de ser e sempre será riqueza fundamental da humanidade. As histórias tristes que costumam nos marcar como “o que é África” não devem e não podem ofuscar tantas outras, tão diferentes e esplendorosa. Lembra-nos a escritora Chimamanda, a história única é um perigo! Lembra-nos a historiadora Nívia Pombo,  a África é um caleidoscópio de riquezas culturais, étnicas, linguísticas. Seus indivíduos têm o dom de construir histórias de vida plenas de significado humano.

Então é hora de voltar a reconhecer os irmãos e sua força, a origem comum, a humanidade.

Esse dia é um chamamento.

Negro não é cor da consciência que nos chama. Negra é a cor de tudo o que está sob a terra onde não bate a luz e as plantas vão buscar alimento. É a cor do inconsciente e da raiz que nutre a todos nós.

Eu quero trazer uma música para esse dia. Uma música de chamamento. Um hino. Pensei em “Carne” da Elza Soares.

Eu quero algo brasileiro, quero trazer a vocês uma cantora preta, poderosa, para a todos dizer: preta é poder!

Elza Soares, Teresinha de Jesus, Carmen Costa, Jovelina Pérola Negra; quem sabe Teresa Cristina ou Alcione, quem sabe Iza, Nara Couto ou Bia Ferreira (por favor, descubram esse nomes todos no Youtube, são fundamentais).

Aí vem minha infância branca de classe média e apartamento de bairro bom, amante dos brancos Beatles e Carpenters… E tudo o que não é brasileiro. Que teve mãe preta (que saudades, Antonieta!), “tratada com carinho” pela família (embora comesse só, na cozinha, embora seu quartinho fosse minúsculo, mal arejado e jamais pudera ser arrumado a seu gosto, tendo de dividi-lo com trapos e quinquilharias da minha avó). Ela era “minha”, minha “Tia Anastácia” pessoal –  a fazer bolinhos de arroz deliciosos e a me ameaçar com a colher de pau quando eu tentava furtar alguns antes de irem para mesa. Eu tinha mais prazer da ameaça falsa, da fuga da cozinha às risadas do que pelo bolinho. Naturalmente a minha segurança de patrãozinho branco revelava uma relação de poder impensável em minha visão de mundo atual. Foi esse mesmo Eu que teve seu primeiro amigo preto somente aos sete anos de idade, e que já rapaz jamais pensara um dia em se apaixonar por uma preta, “não por preconceito só não me atrai”.

A memória de quem já fui ainda se ancora em mim, e me tornou mais permeável à música americana. Então não me entenda mal, a música que oferecerei a você nesse dia de chamamento é americana. É aquela que me fez tremer pela primeira vez ao ouvir uma música. E ela é negra, feminina, poderosa, libertada/libertadora. É verdade, não me permiti tremer ante à força de uma música, antes de ouvir Nina Simone pela primeira vez. Quando digo tremer, é a catarse física mesmo, que começou por um arrepio na espinha, do dorso ao alto da cabeça, e em trechos dos braços e pernas; passou por um marejado de olhos e finalizou em tremedeira. Atribuo a tremedeira a um passo dado à uma importante ruptura de identificações estabelecidas no meu Eu.

Ain’t got no / I got Life marcou meu chamamento, há uns anos atrás. “Eu sou negro”, eu dizia ouvindo Simone dentro de mim, talvez iludido. “Eu sou negro!” “Somos negros!”, “Somos todos negros!”, “TEMOS DE SER NEGROS!”, “ENTENDI”!

Não há caminho, meus amigos. Porque não há negros. Não há brancos. Há oprimidos marcados pela forma. Os oprimidos devem e estão nos ensinando. Nos ensinando a nos Libertar – de verdade – por dentro e por fora.

A cor? A cor é uma construção das relações destrutivas de poder. Esse poder que cala corpos e polui a humanidade com a malévola névoa de diferenças pela aparência e escolhas. Como se houvesse mais de um tipo de humano!

Que possam ouvir Nina Simone em silêncio, estando só para ela. Que se permitam ao impacto. Que ela chacoalhe a alma de vocês e liberte. O que é nosso jamais poderá ser tirado de fato.

Arnaldo V. Carvalho, 20 de novembro de 2019.

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Posfacio (ou agradecimentos às lembranças)

Este texto foi feito sob a permissão interna de uma chuva de lembranças distantes do meu passado. Apenas algumas relatada no escrito. Mas não posso deixar de agradecer por outras que me acompanharam no meu processo de escrita. Agradeço ao escotismo, com sua diversidade econômica e étnica presente no grupo no qual fiz parte, que me deu muitos amigos pobres e pretos (não lembro de um único amigo escoteiro preto que não fosse pobre). Minha amizade por eles me fez subir os morros e comunidades da cidade de Niterói, onde cresci. Salvou-me a acolhida negra dos amigos do hospital universitário onde minha mãe trabalhava. Pobres de grana, riquíssimos em amor, alegria, vida. Nadia, Cristina, Maurício, Antonio Carlos. O carinho do preto para com o molequinho branco não será esquecido. Obrigado amados amigos, onde quer que estejam. Acho que foi nessa época em que minha mãe aos poucos começou a me salvar do Apartheid que ainda acomete alguns conhecidos da infância branca por mim vivida.