Em seu livro “O que é História Cultural”, Peter Burke declara, a respeito dos estudos da Nova História Cultural (NHC, os estudos combinados da historiografia e da antropologia dos anos de 1990 para cá) acerca do corpo:
“Se existe um domínio da NHC que hoje é muito próspero, mas que pareceria quase inconcebível uma geração atrás, este é a história do corpo”.
Fiz questão de copiar o trecho do livro a respeito do tema, repleto de referências de autores importantes, para compartilhar com vocês leitores e os interessados em conhecer mais esse corpo-cultura-história da humanidade. (Arnaldo)
A história do corpo
Se existe um domínio da NHC que hoje é muito próspero, mas que pareceria quase inconcebível uma geração atrás —
em 1970, digamos —, este é a história do corpo. As raras contribuições feitas nesse campo em décadas anteriores eram pouco conhecidas ou consideradas marginais.
Da década de 1930 em diante, por exemplo, o sociólogo-historiador brasileiro Gilberto Freyre estudou a aparência física dos escravos tal como registrada em anúncios de fugitivos publicados nos Jornais do século XIX. Observou as referências às marcas tribais que revelavam de que parte da África os escravos provinham, às cicatrizes dos repetidos açoitamentos e aos sinais específicos do trabalho, tais como a perda de cabelo em homens que levavam cargas muito pesadas na cabeça. Da mesma forma, um estudo publicado em 1972 por Emmanuel Le Roy Ladurie e dois
colaboradores usou os registros militares para estudar o físico dos recrutas franceses no século XIX, observando, por exemplo, que eles eram mais altos no Norte e mais baixos no Sul, diferença de altura que quase certamente se deve a diferenças de nutrição.
Em compensação, do início da década de 1980 em diante, uma corrente cada vez maior de estudos concentrou-se nos corpos masculino e feminino, no corpo como experiência e como símbolo, nos corpos desmembrados, anoréxicos, atléticos, dissecados e nos corpos dos santos e dos pecadores. A revista Body and Society, fundada em 1995, é um fórum para historiadores e sociólogos. Já se dedicaram livros à história da limpeza dos corpos, da dança, dos exercícios, da tatuagem, do gesto. A história do corpo desenvolveu-se a partir da história da medicina, mas os historiadores da arte e da literatura, assim como os antropólogos e sociólogos, se envolveram no que poderia ser chamado de “virada corporal” — como se já não houvesse tantas viradas que os leitores correm 0 risco de ficar tontos.
Alguns dos novos estudos podem ser mais bem descritos como tentativa de reivindicar outros territórios para o historiador. A história do gesto é um exemplo óbvio. O medievalista francês Jacques Le Goff inaugurou 0 campo; um grupo Internacional de acadêmicos, de classicistas a historiadores da arte, contribuiu também, enquanto um ex-aluno de Le Goff, Jean-Claude Schmitt, dedicou um trabalho importante ao gesto na Idade Média. Schmitt percebeu o crescente interesse pelo tema no século XII, que deixou um corpus de textos e imagens que lhe permitiu reconstituir gestos religiosos, como rezar, e gestos feudais, como armar um cavaleiro ou prestar homenagem a um
senhor. Ele argumenta, por exemplo, que rezar com as mãos postas (e não com os braços abertos) e também se ajoelhar para rezar eram transferências para o domínio religioso do gesto feudal de homenagem, ajoelhar-se diante do senhor e colocar as mãos entre as dele.3
Um exemplo vindo da história russa mostra como é importante prestar atenção histórica a diferenças aparentemente pequenas. Em 1667, a Igreja Ortodoxa Russa cindiu-se em duas, quando um conselho reunido em Moscou apoiou inovações recentes e excomungou os defensores da tradição, mais tarde conhecidos como “velhos crentes”. Uma das questões em debate era se o gesto de abençoar deveria ser feito com dois dedos ou três. Não é difícil imaginar como os historiadores racionalistas de épocas posteriores descreveram tais debates, encarando-os como típicos da mentalidade religiosa ou supersticiosa, distante da vida real e incapaz de distinguir 0 significante do insignificante. No entanto, aquele gesto mínimo implicava uma escolha importante. Três dedos significavam seguir os gregos; dois, manter as tradições russas. Citando mals uma vez Bourdieu, ‘ia identidade social está na diferença’ .
Outros estudos sobre a história do corpo também desafiam suposições tradicionais. Por exemplo, o livro de Peter Brown The Body and Society (1988) ajudou a solapar a visão convencional do ódio cristão ao corpo. O mesmo foi feito por Holy Feast and Holy Fast (1987), de Caroline Bynum, discutido anteriormente (ver p.67) como exemplo de história das mulheres, mas igualmente importante por Sua discussão sobre o corpo e o alimento como meio de comunicação.
Como observou Roy Porter, um dos pioneiros do campo, a rápida ascensão do interesse pelo assunto sem dúvida alguma foi encorajada pela disseminação da Aids, que chamou a atenção para “a vulnerabilidade do corpo moderno”. O aumento do interesse pela história do corpo segue paralelo ao interesse pela história do gênero (ver p.65-6). No entanto, as referências ao corpo presentes nas Obras dos teóricos discutidos no começo deste capítulo sugerem uma explicação mais profunda para uma tendência mais gradual. A discussão de Mikhail Bakhtin sobre cultura popular na Idade Média, por exemplo, tem muito a dizer sobre corpos grotescos e especialmente sobre o que o autor descreveu como “o estrato corporal inferior”. Na história de Norbert Elias sobre o autocontrole, estava implícita, se não explícita, uma preocupação com o corpo.
Na obra de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, os suportes filosóficos do estudo sobre o corpo tornam-se visíveis. Como o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, Foucault e Bourdieu romperam com a tradição filosófica que remontava a Descartes e separava 0 corpo da mente, a ideia do “fantasma na máquina’ como descreveu galhofeiramente o filósofo inglês Gilbert Ryle.
O conceito de habitus, de Bourdieu, foi expressamente designado para cobrir o intervalo ou para evitar a oposição simples entre mentes e corpos.
Fonte: BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 94-97
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