O brilho da faca de dois gumes – Texto inédito!

Esse texto é de minha autoria, e  foi publicado em novembro de 2000, no Jornal Naturalmente. Chega em primeira mão aos usuários do blog, com muito de seu conteúdo permanecendo atual. Para que lado a faca apontar seu brilho? Seguirá ela sendo utilizada de modo sábio, ou destrutivo? A reflexão acerca da violência e da influência dos meios de comunicação é algo que deve se estabelecer em caráter permanente, uma vez que o ser humano é um animal comunicativo em sua essência.

Aguardo os comentários.

Arnaldo V. Carvalho

O BRILHO DA FACA DE DOIS GUMES

Pode a mídia estar influenciando no atual quadro de violência?

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Estou há semanas chocado. Atrasei inclusive o envio deste escrito ao editor do jornal, tal a perturbação mental que me ocorreu, após o episódio vivido por aquela criança que fora torturada, cujas imagens foram exibidas para todo o país através do “Programa do Ratinho”. Não vi o programa, não vi nenhuma imagem, mas apenas por me descreverem um pouco do ocorrido, senti em minhas vísceras um mal estar enorme, uma desorientação, uma completa falta de identidade com este mundo vil. A impressão que me dá é que me socaram o fígado várias vezes, e dentro da minha cabeça as lembranças continuam. Sou do tipo que não busco esse tipo de informação. Mas não porque quero tampar o sol com a peneira, mas porque acredito que a única forma de resolver a questão é pesar para o lado oposto. Enquanto essas notícias geram ondas de medo, revolta e negatividade, procuro levar às pessoas através de meus cursos e atendimentos, através de meu contato diário com o mundo, a mensagem oposta de harmonia e felicidade, produzindo ondas que constroem, ao invés de destruir. Mas confesso que fui pego pela onda “pesada”. Após semanas, continuo numa espécie de luto, por aquela criança, e de forma retumbante por ela ter trazido a tona a consciência de que situações de brutalidade não param de acontecer. E isso não é no Brasil, é no mundo todo, e em todas as classes sociais. Tenho ainda guardado o jornal com imagens daquela babá que esbofeteou o bebê na cadeirinha. E os tantos estupros, e os tantos sequestros… E agora mais esse mutilador fragmento da realidade humana.

Em que condições essas crianças chegarão a idade adulta? Será que chegarão? As identidades delas estarão para sempre DESTRUÍDAS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Se apresentarão ao mundo reagindo à forma como o mundo se apresentou a eles. Fugirão, tornando-se inseguros, esquizofrênicos, paranoicos, entre uma série de comprometimentos psicológicos, ou atacarão este mundo, tentando destruí-lo para que ele não os destrua novamente: se tornarão no mínimo distantes, não se permitirão o toque, poderão ser cruéis, perversos, desenvolver as mais variadas psicopatias.

Ao longo da história, a crueldade humana – que é muito mais do que simplesmente “violência” – tem mostrado “o quão evoluídos” somos. Qualquer filme de época mostra que as torturas estão presentes na idade média, moderna, e mesmo no “inocente” período em que viveram nossos avós (se tiver o coração forte veja o filme “A Espera de um Milagre”), no início do século.

Mas hoje, o mundo tem câmeras. Câmeras que registram tudo o que os olhos não podiam alcançar. Os olhos veem, o coração sente. O quanto isso é bom? Será que isso não pode incitar ainda mais a violência? Lembrei-me do episódio do assalto ao ônibus no Rio de Janeiro, onde um grupo de policiais-exibicionistas, diante das câmeras de TV, dispararam seis tiros que se alojaram brutalmente no corpo de uma menina inocente, para momentos depois, já longe das mídia, do mundo, descontar o erro executando o “assaltante-alvo-perdido”. Você se lembra? Quantos terroristas e psicopatas não se encontram desferindo golpes violentos contra a sociedade que os construiu, ao mostrar propositalmente toda a insanidade cruel ao qual o ser humano – humano? – parece ser capaz? Se por um lado para esses psicopatas as câmeras são um instrumento inibitório, para outros é de exibicionismo! Abrilhantamos o gume das facas e o cano dos revólveres que disparam sobre nossos próximos! Qual a solução?

Talvez, se começarmos a pensar qual a maneira mais correta de se utilizar e mostrar essas imagens, poderemos transformá-las não em mais um canal exibicionista de violência e revolta, mas em um instrumento, que através da profunda mágoa deixada no coração dos homens, os estimule através da consciência a buscar a paz que cada um tem dentro de si.

Não é de agora que a mídia tem construído uma grande quantidade de associações entre humor e violência. Quem viu o filme “Pulp Fiction”, riu de todo o tipo de atrocidade. A trama e os recursos audiovisuais, em especial a trilha sonora, são cuidadosamente planejados, de forma que o terrível se torna cômico. Sem reflexão, o cérebro humano, com estrutura genética de alguns milhares de anos, irá misturar informações que originalmente estariam alocadas em locais distantes… Assim, quando assistimos a isto tudo de forma passiva e alienada, nos tornamos tão condicionáveis quanto os ratinhos das experiências de Skinner.

É absurdo uma imagem como essa ser mostrada num programa que mistura violência com comédia, como o bizarro Programa do Ratinho. Isso é coisa séria. O que acontece quando a mente de nossas crianças registram essas imagens? Onde chegaremos com essa total falta de critério? Precisamos encontrar uma forma de não negar a realidade, e ao mesmo tempo discutir isso como o mais urgente dos aspectos de nossa vida em comum.

Teóricos afirmam que se nos revoltamos com essa situação, é porque a revolta existe dentro de nós. Nessas horas, fico imaginando que isso é uma verdade absoluta, os seres humanos são muito mais monstros que seres humanos. Mas não. Cada um, como eu já disse, tem a paz dentro de si. Temos tudo: A compaixão e o ódio, a revolta e o perdão, a sanidade e a insanidade. É preciso cultivar o máximo de nosso lado melhor, não permitindo que as ervas daninhas emocionais, que tanto nos prejudicam e aos que nos cercam brotem porque deixamos espaço para elas.

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Para quem já me lê há tempos: Hoje não tem filosofia. Tem dor, tem angústia, tem um suspiro melancólico, tem um vazio que tenho tentado preencher com amor à vida.

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